Açúcar: Do Ouro Branco ao Ingrediente Criativo da Gastronomia Moderna

O açúcar é, simultaneamente, um símbolo de prazer, de poder e de transformação cultural. A sua presença na história da gastronomia é inseparável das grandes rotas comerciais, da evolução da doçaria e das tendências contemporâneas de saúde e criatividade culinária.

Neste artigo, exploramos o caminho do açúcar — desde o seu estatuto de luxo na Antiguidade até ao seu uso repensado na cozinha moderna.

Origens do “ouro branco”

O uso do açúcar tem origens milenares. A cana-de-açúcar, planta tropical nativa do Sudeste Asiático, foi inicialmente cultivada na Índia, onde, já no século V a.C., se produzia um xarope doce chamado sharkara (de onde deriva o termo “açúcar”).

Através das rotas comerciais persas e árabes, o açúcar chegou à Europa medieval, sendo considerado um produto raro e precioso, reservado à nobreza e utilizado tanto como medicamento quanto como especiaria. Só a partir do século XV, com a expansão marítima portuguesa e espanhola, a produção de açúcar se intensificou, nomeadamente nas ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Canárias) e mais tarde no Brasil.

Durante séculos, o açúcar foi associado ao luxo, ao poder económico e à sofisticação. Era conhecido como “ouro branco” — um produto que definia impérios e impulsionava economias coloniais, frequentemente à custa de exploração humana.

Doçaria europeia: tradição com identidade

A introdução do açúcar refinado transformou profundamente a gastronomia europeia. A doçaria conventual portuguesa, por exemplo, nasceu do encontro entre os ovos, a amêndoa, as especiarias orientais e o açúcar, resultando em verdadeiros tesouros gastronómicos como os papos de anjo, o toucinho do céu ou os pastéis de nata.

O açúcar tornou-se sinónimo de requinte e conservação. Frutas cristalizadas, marmeladas, compotas e licores permitiam prolongar a vida útil dos alimentos e agradar o paladar em tempos sem refrigeração.

Com o tempo, o açúcar passou a ser acessível às classes médias, e a sua presença consolidou-se nos bolos de aniversário, sobremesas festivas e bebidas populares.

Açúcar na gastronomia moderna: entre arte e moderação

Hoje, o açúcar continua a ter um papel essencial, mas a forma como é encarado mudou radicalmente.

1. Criatividade na alta cozinha

Na gastronomia contemporânea, o açúcar é utilizado de forma precisa e artística. A pastelaria moderna explora o açúcar não só como adoçante, mas como elemento estrutural: para criar texturas, contrastes de temperatura e formas esculturais.

Do açúcar soprado às espumas doces, dos caramelos técnicos aos cristais decorativos, o seu uso ultrapassa o simples sabor: é forma, é crocância, é contraste visual e táctil.

Chefs como Jordi Roca, Pierre Hermé ou Dominique Ansel reinventaram a forma de “pensar o doce”, com menos açúcar, mais frescura e maior foco em ingredientes naturais.

2. Equilíbrio e saúde

O debate sobre o consumo excessivo de açúcar levou a uma mudança no comportamento dos consumidores e dos profissionais da cozinha. Hoje valoriza-se o equilíbrio dos sabores (doce, ácido, amargo, salgado e umami) e a redução dos açúcares refinados.

Há uma crescente preferência por:
  • Açúcares naturais (mel, xarope de ácer, agave, tâmaras)
  • Frutas como fontes de doçura (bananas, maçãs, mangas)
  • Técnicas de fermentação para desenvolver doçura natural
  • Sobremesas menos doces, com protagonismo do ácido ou do salgado
A pastelaria saudável e a chamada clean label (sem aditivos nem açúcares escondidos) tornaram-se tendências fortes, tanto em espaços gourmet como em restauração rápida.

Açúcares alternativos: funcionalidade e inovação

Para além do açúcar tradicional de cana ou beterraba, o mercado moderno dispõe de inúmeras alternativas que respondem a exigências técnicas e nutricionais distintas:
  • Mel – rico em compostos aromáticos e antimicrobianos.
  • Xarope de ácer (maple syrup) – muito usado na América do Norte, com notas tostadas.
  • Açúcar de coco – de índice glicémico mais baixo, sabor ligeiramente caramelizado.
  • Eritritol, xilitol e stevia – adoçantes naturais ou derivados, com uso crescente na confeitaria funcional.
  • Panela, rapadura ou mascavado – menos refinados, conservam melanoidinas e minerais.
Cada um destes produtos tem características técnicas próprias, influenciando humidade, cristalização, caramelização e estabilidade, exigindo conhecimento e criatividade dos chefs.

O açúcar como património cultural

Em Portugal, o açúcar é parte da identidade culinária. A ligação histórica à produção de cana-de-açúcar na Madeira e no Brasil está presente em receitas, nomes de ruas, festivais e tradições religiosas.

A gastronomia moderna honra essa herança ao reinterpretar clássicos com nova linguagem: menos doce, mais complexa, mais saudável.

Exemplos como:
  • Pastéis de nata com massa folhada de azeite
  • Pão de ló leve, com recheio de frutas da época
  • Doçaria conventual reimaginada com técnicas modernas
…mostram que o açúcar pode manter a sua alma de tradição sem perder a capacidade de evolução.

Conclusão: prazer com consciência

O açúcar continua a ser um dos ingredientes mais poderosos da cozinha: evoca memórias, celebrações e conforto. Mas o seu papel está em transição — de símbolo de abundância para elemento de equilíbrio e sofisticação.

Na gastronomia moderna, o desafio não é eliminar o açúcar, mas entendê-lo melhor: usá-lo com parcimónia, intenção e criatividade.

Em vez de excessos, propõe-se a medida certa. Em vez de doces empalados, a delicadeza dos contrastes. O açúcar deixa de ser protagonista para ser coadjuvante de experiências memoráveis — um tempero emocional, usado com sabedoria.

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