Castanha — o fruto que aquece a memória e alimenta a alma

Um fruto que carrega séculos de história

A castanha é mais do que alimento: é memória, ritual, sobrevivência. Está presente na poesia, nas tradições religiosas, nas feiras de outono e até nos provérbios populares. Poucos frutos conseguem condensar tanta cultura e nutrição, tanta pobreza e festa, como esta semente envolta em ouriço.

Das florestas ancestrais ao drama americano

Durante séculos, imensas florestas de castanheiros-doce (Castanea sativa) cobriam a Europa e, mais tarde, a América. No leste dos Estados Unidos, Longfellow escreveu versos à sombra do castanheiro, sem imaginar que, poucas décadas após a sua morte, esses gigantes desapareceriam.

A tragédia começou em 1904, quando mudas importadas da Ásia, infetadas com o fungo Endothia parasitica, foram plantadas em Long Island. O que para as árvores orientais era uma praga tolerável revelou-se mortal para os castanheiros americanos. Em menos de meio século, a doença da tinta reduziu a zero uma das maiores populações florestais do continente. Hoje, restam apenas projetos de recuperação genética e cruzamentos experimentais para devolver o castanheiro às terras da América do Norte.

Origem e percurso na Europa

A etimologia liga a palavra castanha a Castanon, na Tessália (Grécia), onde o fruto já era apreciado na Antiguidade. Teofrasto e Plínio descreveram a árvore, e Varrão incluiu-a nos tratados agrícolas. A preferência dos romanos levou-os a plantar castanheiros por toda a Europa, espalhando o hábito de consumir o fruto cru, assado ou cozido.

A árvore poderá ter vindo do Cáucaso ou da Anatólia, antes de se instalar na Tessália. No século XIII, França importava castanhas da Lombardia, mas no século XVI já as cultivava no Maciço Central e na região de Lyon, onde chegaram mesmo à corte. A sua popularidade era tamanha que até Shakespeare, no Macbeth, coloca castanhas no diálogo das bruxas, sinal de que o fruto já era conhecido em Inglaterra.

Alimento de reis e de pobres

A castanha é um fruto com dupla identidade: igualmente nobre e humilde.
  • Em França, serviu de base alimentar a regiões inteiras, sobretudo antes da chegada da batata.
  • Na Córsega, substituiu o pão — daí o nome “árvore-do-pão da Córsega”.
  • Em Itália, desde a Antiguidade até à Idade Média, era sustento essencial, sobretudo cozida ou em farinha.
  • No Japão, integra cerimónias ancestrais e pratos festivos, mostrando como o Oriente também a acolheu.
Mas o lado luxuoso também existe: a castanha recheia gansos e perus assados, transforma-se em puré aveludado para acompanhar caça, e sobretudo brilha nos marrons glacés, doces franceses de requinte que exigem paciência e técnica quase alquímica.

Portugal: tradição, sustento e festa

Em Portugal, a castanha é símbolo do outono e da comunidade. Durante séculos, foi alimento de base nas serras do Norte e Centro, onde o trigo e o milho escasseavam. Assada na brasa ou cozida com erva-doce, sustentou famílias inteiras, serviu de pão e até de moeda de troca.

O Magusto

O ponto alto da sua celebração é o magusto, festa popular de São Martinho (11 de novembro). Castanhas assadas, vinho novo, música e convívio em volta da fogueira transformam o fruto num ritual de partilha e alegria, que sobrevive do Minho à Beira Interior, da Serra da Estrela a Trás-os-Montes.

A produção nacional

Portugal é hoje um dos principais produtores europeus, com destaque para Trás-os-Montes (a famosa castanha de Soutos da Lapa ou a castanha dos soutos de Bragança, ambas com Denominação de Origem Protegida), Beira Interior e Alto Minho. A exportação é forte, sobretudo para França e Itália, países que ainda consomem grandes quantidades.

Na gastronomia portuguesa
  • Sopa de castanha (especialmente na Beira Interior e em Trás-os-Montes).
  • Javali ou perdiz com castanhas, pratos de caça que unem rusticidade e nobreza.
  • Pão de castanha, memória dos tempos de escassez.
  • Doçaria conventual, que inclui castanhas em cremes, tartes e pudins.
  • Castanhas assadas, simples, vendidas em cartuchos de papel pelas ruas no outono — um símbolo urbano tão forte como rural.

Nutrição: um fruto que alimenta corpo e alma

A castanha é frequentemente chamada de “cereal da árvore” porque, ao contrário de outras nozes, tem baixo teor de gordura e alto teor de amido.
  • Rica em hidratos de carbono complexos, fornece energia de absorção lenta.
  • Boa fonte de vitamina C (raro em frutos secos), além de vitaminas do grupo B.
  • Contém potássio, magnésio e ferro, minerais importantes para a função muscular e equilíbrio nervoso.
  • Com a casca fina e sem glúten, a castanha é também indicada para dietas específicas.
É um alimento sazonal, mas profundamente versátil: assada, cozida, em farinha, em puré, em sobremesas, acompanha pratos de carne e peixe, entrando tanto na cozinha quotidiana como na de celebração.

Entre memória e futuro

A castanha é um símbolo de resiliência. Do drama americano à recuperação europeia, das serras portuguesas à sofisticação francesa, ela mostra como um fruto pode ser ao mesmo tempo humilde sustento e objeto de luxo.

Hoje, com as alterações climáticas, os soutos portugueses enfrentam novas pragas e desafios, como a vespa-das-galhas-do-castanheiro. Mas o investimento em variedades resistentes, em técnicas sustentáveis e em novas aplicações gastronómicas mostra que o futuro da castanha pode ser tão fértil como o seu passado.

Epílogo — Uma fogueira acesa no coração

Quando se segura uma castanha quente num dia frio de novembro, há mais do que sabor: há história, comunidade e identidade. Do magusto popular à mesa sofisticada, a castanha recorda-nos que o alimento é memória partilhada.

No fim, talvez o segredo esteja nisto: um fruto que nasce escondido no ouriço, mas que, uma vez libertado, ilumina lareiras, mesas e corações.
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