A Revolução à Mesa: Gordura, Açúcar e Emancipação Um retrato emocional e crítico da mudança alimentar na era da abundância O doce e o gordo escondido em cada garfada Enquanto se apregoa a preocupação com a saúde, o consumo de gordura e açúcar disparou silenciosamente, infiltrando-se em quase tudo o que comemos. Tal como a casca de uma batata envolve o seu miolo, gordura e açúcar estão entranhados nos alimentos processados, mas discretamente. Estão nos enlatados, refrigerantes, produtos prontos a consumir, bolachas, cereais, molhos, refeições congeladas, e em milhares de snacks — sem rosto, sem textura, mas com sabor reconfortante. Ao contrário do bacon ou da barra de chocolate, não os vemos, apenas os saboreamos com prazer automático. No final da década de 1960, os americanos consumiam cerca de 30% mais gordura do que os seus avós e aproximadamente 130 gramas de açúcar por dia. A era da prosperidade pós-Segunda Guerra Mundial trouxe não apenas mais rendimentos, mas também um boom alimentar onde o sabor passou a ser comandado pela química e pela conveniência. Industrialização, consumo e os números que contam a história Segundo estatísticas da época, os maiores aumentos ocorreram nos anos de ouro da economia — entre 1945 e 1970. Nesse intervalo, a indústria alimentar floresceu:
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Surgiram os primeiros supermercados
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Multiplicaram-se marcas globais
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A comida tornou-se mercadoria padronizada, rápida e emocionalmente carregada
A cultura da mesa mudou — e com ela, a maneira como comemos, compramos e compreendemos o próprio corpo. Nem todas as gorduras são iguais: distinguir para entender Mas há uma nuance importante: nem todas as gorduras são iguais.
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As gorduras vegetais registaram os maiores crescimentos
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As gorduras animais, como a banha ou a manteiga, perderam importância, ainda que não tenham desaparecido
Em 1960, pela primeira vez, vendeu-se mais margarina do que manteiga nos Estados Unidos. A margarina, rica em ácidos gordos insaturados, era considerada mais saudável porque não elevava tanto o colesterol como a manteiga tradicional. Estávamos diante de um possível sinal de mudança — mas seria essa mudança movida pela saúde ou por outros fatores? A margarina, a emancipação e o poder na escolha A substituição da manteiga pela margarina pode ser lida sob várias lentes. Seria uma evolução nutricional, conduzida por estudos médicos e campanhas públicas? Ou também — e talvez sobretudo — uma expressão de mudança de valores sociais, em que a mulher emerge como figura central da economia doméstica? Afinal, são as mulheres que tradicionalmente compram a maioria dos alimentos, planeiam as refeições e organizam o tempo da cozinha. Com o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, a alimentação industrial ofereceu algo novo:
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Rapidez
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Previsibilidade
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Menos tempo na cozinha
A margarina, o prato pré-pronto, o iogurte adoçado — todos são produtos da modernidade e da libertação parcial da mulher das tarefas domésticas repetitivas. A industrialização alimentar como aliada (ou armadilha) da emancipação É irónico. Por um lado, a indústria alimentar surgiu como suporte à autonomia feminina — permitindo que as mulheres conciliassem trabalho, maternidade e vida social com menos peso na cozinha. Por outro lado, essa mesma indústria passou a ditar normas de beleza, magreza, disciplina alimentar e exigência estética, criando uma nova prisão simbólica. A cozinha deixou de ser uma obrigação, mas o corpo passou a ser um projeto vigiado — e comer, uma equação carregada de culpa. Conclusão: Comer bem é escolher livremente A revolução à mesa não é apenas sobre ingredientes. É sobre o poder de decidir, de saber, de cuidar sem ceder à manipulação do mercado. Compreender a presença oculta da gordura e do açúcar nos nossos alimentos é, hoje, um passo fundamental para recuperar a autonomia alimentar. É preciso saborear, mas também saber. É preciso cozinhar, mas também questionar. É preciso comer — mas nunca perder o direito à liberdade no prato.
INDEX CULINARIUM XXI, Divulgação Global