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Cozinha na Bíblia Bíblia & Gastronomia O grande livro do cristianismo, além de definir o caminho espiritual de milhões de pessoas ao longo da história, independentemente das diversas interpretações religiosas, é também um conjunto de documentos de grande importância para explicar a evolução dos hábitos alimentares na época antes e depois de Cristo. Embora a delimitação geográfica dos acontecimentos nos restrinja a uma determinada região do planeta, o Novo Testamento, escrito após o nascimento de Jesus Cristo, contém alusões a uma gastronomia bastante variada – certamente fruto da expansão romana e do choque cultural gerado nesse período. A gastronomia na Bíblia é uma janela fascinante para os costumes alimentares, sociais e espirituais dos povos antigos. Mais do que simples nutrição, a comida tinha profundo significado simbólico, cultural e religioso. Na Bíblia, os alimentos estão fortemente ligados à identidade e à fé. O Antigo Testamento apresenta uma série de leis alimentares, como as do livro de Levítico, que estabelecem distinções entre alimentos “puros” e “impuros”, refletindo uma ética de separação e santidade. Comer não era apenas um ato físico, mas também espiritual. O pão, por exemplo, é símbolo de vida e provisão divina — o “maná” no deserto é um exemplo claro da dependência de Deus. As refeições também tinham papel central na hospitalidade, uma virtude essencial nas culturas bíblicas. Receber alguém com comida era acolher e proteger, como fez Abraão ao servir banquete aos três visitantes misteriosos (Gênesis 18). Por outro lado, festins reais ou religiosos — como a Páscoa — tinham forte carga simbólica e ritual. No Novo Testamento, a comida continua presente, mas ganha ênfase diferente. Jesus participa de muitas refeições, muitas vezes com pecadores e marginalizados, rompendo barreiras sociais. Multiplica pães e peixes, transforma água em vinho, e institui a Eucaristia com pão e vinho, símbolos de seu corpo e sangue. A gastronomia torna-se um meio de revelar o Reino de Deus. Além disso, o Apocalipse culmina com a imagem de um “grande banquete”, representando a comunhão final entre Deus e os salvos. Assim, a gastronomia bíblica vai além de receitas ou ingredientes. É teologia viva, expressão de fé, partilha, identidade e promessa. Comer, na Bíblia, é sempre mais do que alimentar o corpo — é um ato carregado de significado espiritual. A Arca de Noé No livro do Gênesis, que descreve o início de tudo, encontramos a primeira referência à alimentação quando Eva oferece a Adão o fruto da árvore proibida – a digestão de um alimento como origem do pecado. O valor simbólico desse episódio sugere uma relação entre alimentação e pecado, que ainda hoje está presente em diversas religiões ao redor do mundo. O empreendimento de Noé na construção da Arca, que seria sua salvação durante o dilúvio, denota um cuidado estratégico significativo – podemos até usar um termo moderno e chamar de logística alimentar. Afinal, os preparativos para reunir e armazenar alimentos para oito pessoas ao longo de um ano e 11 dias exigiriam planejamento. Dado que transportar carne fresca seria impossível, é provável que a alimentação tenha sido baseada principalmente em cereais, frutas e legumes. Além disso, os animais levados a bordo poderiam fornecer leite e ovos, mas, por outro lado, também necessitavam de alimentos. Se organizarmos historicamente Noé, seu período de vida teria ocorrido em 4000 a.C., entre o Neolítico e a Idade do Bronze. Naquela época, o homem era nômade, seguia suas manadas em busca de pastagens e alimentava-se de vegetais, frutas e cereais. Foi nesse período que começaram as primeiras tentativas de produzir farinha de trigo e assar um tipo de pão rudimentar sobre pedras quentes – um processo que, curiosamente, ainda hoje é utilizado pelos beduínos na região do Mar Vermelho e do Sinai. Com o fim do dilúvio, inicia-se gradualmente a fixação do homem à terra. Durante esse longo período, que certamente compreendeu centenas de anos, o ser humano aprendeu a domesticar animais, cultivar cereais e, vivendo próximo a mares, lagos e rios, passou também a consumir peixes e moluscos. A piscicultura, no entanto, só se desenvolveria muitos séculos depois, entre os séculos VIII e IX. A transição do nomadismo para a sedentarização não apenas trouxe um novo conceito alimentar, mas também transformou a refeição em um momento de celebração e convívio comunitário. A comunidade da aldeia reunia-se ao redor da comida para tomar decisões importantes e compartilhar responsabilidades. A divisão de tarefas era evidente: enquanto o homem fabricava utensílios, caçava e pescava, a mulher cuidava da colheita de cereais, frutas e legumes. Os alimentos passaram a ser usados como moeda de troca, iniciando a estruturação econômica da sociedade. Moisés e a gastronomia egípcia A época de Moisés coincide com o auge do Império Egípcio, onde o culto à morte e ao luxo dominava as cerimônias. Grandes e opulentos banquetes marcavam os encontros no Palácio do Faraó. Embora tenha nascido hebreu, a história conta que Moisés cresceu como um príncipe egípcio, usufruindo de todos os privilégios das festividades faraônicas. Os convidados chegavam ao palácio por volta do meio-dia e eram conduzidos a salas perfumadas com incenso e mirra. Servidores untavam-lhes a testa com óleos aromáticos, enquanto lavavam os pés em bacias de ouro com água perfumada. A recepção era embalada por melodias suaves de harpa, lira, guitarra, tamborim e flauta. As mulheres recebiam um tratamento diferente: um servidor trazia a bebida em um recipiente em forma de vaso e enchia uma tigela, que um escravo, por sua vez, oferecia à dama. No início da refeição, cada convidado tinha uma mesa própria, onde era servido um prato inicial: uma sopa de couve, utilizada para aguçar o apetite dos convivas antes do consumo de vinho. Em seguida, vinha uma sopa de amêndoa ou lentilha, apreciada não tanto pelo sabor, mas pela colher de marfim ou bronze, que estava na moda na época. O festim cerimonial durava várias horas e incluía pratos principais compostos por peixes e carnes de gazela, pato, ganso, codornizes e outras aves. Os animais, por tradição, só eram abatidos quando os primeiros convidados chegavam, para garantir a frescura da carne. Enquanto o ganso era o prato nacional do Antigo Egito, a ovelha, cabra, cabrito e carneiro não eram consumidos – seu valor estava na lã, altamente apreciada. Nas margens férteis do Nilo, cresciam vários legumes, sendo o aipo um dos mais estimados. Para acompanhar o banquete, eram servidos vinho e cerveja. As pinturas da tumba de Ramsés III mostram o preparo do pão, muitas vezes moldado em formas de animais ou enrolado como um caracol. O pão era amassado com os pés e assado em fornos construídos com lama do Nilo. Outra pintura, encontrada na tumba de um possível gourmet da época, exibe um livro de culinária aberto, onde é possível identificar dez tipos de carne, cinco tipos de aves, dezesseis tipos de pão e bolos, seis vinhos, quatro cervejas e onze frutos. No final da refeição, o Faraó agradecia aos deuses pela dádiva e a parte festiva da cerimônia começava – com música, cânticos de jovens, apresentações de malabaristas, jogos de sorte e azar, e até mesmo o jogo de damas, já praticado na época.