O Contexto Histórico de Arte de Cozinha: Um Livro entre Corte, Império e Reconstrução Nacional

Portugal no Século XVII: Entre Crise e Restauração

A publicação de Arte de Cozinha em 1680 não surge num vazio. O século XVII português é marcado por fortes instabilidades políticas, económicas e sociais, e o livro de Domingos Rodrigues inscreve-se directamente nesse momento de transição e reconfiguração identitária do país.

Portugal vivia então as consequências da Restauração da Independência (1640), após sessenta anos de domínio filipino. Com a ascensão da dinastia de Bragança e o reinado de D. João IV, iniciou-se um longo processo de reconstrução do Estado, da administração e da imagem da monarquia portuguesa. Esta reconfiguração cultural e simbólica não excluiu a mesa: a gastronomia tornou-se parte da afirmação nacional e da recomposição da corte.

Foi neste ambiente que Domingos Rodrigues começou a construir a sua carreira, primeiro como cozinheiro de casas nobres, e mais tarde como cozinheiro da Casa Real. A sua obra reflecte, assim, não apenas um saber técnico acumulado, mas uma visão da cozinha como expressão de ordem, prestígio e poder, alinhada com o projecto político de recuperação do esplendor régio.

A Corte Portuguesa e o Papel da Mesa

A corte portuguesa, depois da Restauração, procurava reafirmar o seu prestígio dentro e fora do país, procurando manter-se à altura das suas congéneres europeias, sobretudo a francesa e a espanhola. A etiqueta, o cerimonial e a arte de bem servir ganharam nova importância, e a cozinha tornou-se instrumento de representação e encenação do poder.

As grandes refeições palacianas eram momentos de exibição política e cultural. Serviam-se múltiplos pratos, organizados em sucessões simétricas, com jogos de apresentação e um sentido de abundância que excedia a necessidade nutricional. A função do cozinheiro não era apenas alimentar — era compor um cenário simbólico que reafirmava a sofisticação e autoridade da corte.

É neste quadro que Arte de Cozinha deve ser lida: como um manual técnico ao serviço da encenação régia, onde a organização do saber culinário participa de um projecto de governo e de revalorização da identidade nacional.

Uma Gastronomia de Encruzilhada: Entre Europa e Império

No plano alimentar, Portugal encontrava-se numa posição única enquanto ponto de cruzamento entre continentes. A expansão marítima dos séculos anteriores deixara marcas profundas na alimentação da elite. Produtos como o açúcar, o arroz, a pimenta, o gengibre, o cravinho, o coco, o feijão, a mandioca, o pau-de-canela e a noz-moscada eram já familiares na cozinha portuguesa da época.

Em Arte de Cozinha, estas influências aparecem incorporadas com naturalidade. Domingos Rodrigues não se refere directamente ao mundo ultramarino, mas os ingredientes falam por si: a presença das especiarias orientais, dos doces tropicais e de ingredientes então exóticos traduz a herança imperial de Portugal.

Ao mesmo tempo, nota-se a presença da tradição ibérica e mediterrânica, na utilização de azeite, alho, cebola, ervas aromáticas e vinho. Mas também se encontram referências e técnicas de origem francesa (molhos, caldos, fricassés) e italiana (massas, confeitaria), reflectindo a circulação de saberes e modas culinárias entre as cortes europeias.

A cozinha de Domingos Rodrigues é, assim, um retrato implícito do Portugal do século XVII enquanto espaço de síntese cultural, onde o gosto da aristocracia se forma numa tensão constante entre herança, influência e adaptação.

O Livro como Projecto de Ordem

Em tempos de instabilidade e reconfiguração política, o acto de escrever um livro técnico — e de o publicar — é também um gesto político. Ao organizar o saber da cozinha de forma sistemática, Domingos Rodrigues participa num movimento mais amplo de normalização e institucionalização dos saberes práticos, próprio da modernidade emergente.

A publicação de Arte de Cozinha alinha-se com a lógica do Barroco tardio: classificar, categorizar, sistematizar. Tal como se fazia com as ciências naturais, a arte militar ou a medicina, também os ofícios da cozinha são agora passíveis de serem ensinados e perpetuados em livro. A palavra escrita garante autoridade, continuidade e reprodução.

Ao assinar o livro, Rodrigues reivindica para o cozinheiro um estatuto de autor e de mestre, rompendo com a invisibilidade social que até então marcava grande parte dos ofícios da casa. Esta transição do oral para o impresso marca um ponto de viragem fundamental: o cozinheiro deixa de ser apenas executor — passa a ser guardião e transmissor do saber culinário.

Uma Obra entre Dois Mundos

Arte de Cozinha situa-se entre dois tempos. De um lado, guarda os saberes empíricos, os gestos transmitidos por via oral, o improviso e a adaptação prática. Do outro, antecipa um novo tempo — o da profissionalização, da codificação e da criação de modelos pedagógicos formais.

Este duplo enraizamento torna o livro particularmente valioso. Ele preserva o passado e prepara o futuro. Reflecte uma época em que o saber ainda era vivido e executado, mas começava a ser sistematizado, organizado e padronizado para as gerações seguintes.

Conclusão: A Cozinha como Espelho de uma Nação em Reconstrução

A publicação de Arte de Cozinha, em 1680, inscreve-se num momento decisivo da história portuguesa, em que o país procurava reafirmar a sua soberania, reestruturar as suas instituições e reposicionar-se no concerto europeu. Domingos Rodrigues, ao escrever e organizar o saber culinário da corte, participa activamente neste processo.

O seu livro é simultaneamente um tratado técnico, um manifesto simbólico e um documento histórico. Fala de alimentos, mas também de poder, de circulação cultural e de identidade. Testemunha um tempo em que a cozinha era palco e instrumento da afirmação nacional, e em que o acto de escrever uma receita era, também, uma forma de construir um país.

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