Domingos Rodrigues e a Arte de Cozinha: O Primeiro Tratado Gastronómico Português O Cozinheiro da Corte e o Saber Impresso Em 1680, Portugal assistiu à publicação de um livro singular: Arte de Cozinha, da autoria de Domingos Rodrigues, cozinheiro-mor da Casa Real. Mais do que uma simples colecção de receitas, esta obra é um documento estruturante da história da gastronomia portuguesa. É, até hoje, o primeiro tratado culinário impresso em língua portuguesa com autoria identificada, e marca uma viragem na forma como se regista e transmite o saber alimentar em Portugal. Domingos Rodrigues, nascido em meados do século XVII, exerceu funções na corte durante os reinados de D. Pedro II e D. João V. A sua posição permitiu-lhe aceder aos ingredientes mais sofisticados, às práticas da elite europeia e à exigência de uma mesa régia que conciliava tradição, pompa e intercâmbio cultural. A sua obra reflecte essa posição privilegiada, mas também revela uma tentativa de organizar e sistematizar uma culinária que até então vivia sobretudo da oralidade e da prática familiar. Estrutura e Intenção da Obra Arte de Cozinha é um livro que, mesmo à distância de mais de três séculos, se lê como uma proposta de autoridade. Domingos Rodrigues pretende mais do que instruir: pretende codificar. A sua escrita é clara, concisa e objectiva, marcada por uma cadência que denuncia a transmissão oral, mas que procura já uma forma literária própria. A obra organiza-se em várias secções, divididas por tipos de pratos: sopas, carnes, aves, caça, peixes, legumes, ovos, doçaria e conservas. Esta classificação, embora hoje comum, era inovadora no contexto português da época. Cada receita apresenta-se com uma introdução sucinta e um conjunto de instruções directas, sem grandes justificações nem floreados linguísticos. Não há medidas exactas como hoje se esperaria, nem tempos cronometrados. As quantidades são indicadas por intuição ou proporção: “um pouco”, “quanto baste”, “suficiente para...”. Isso não retira valor técnico à obra; pelo contrário, aproxima-a da realidade prática da época e da experiência exigida aos cozinheiros do seu tempo. Uma Cozinha de Influência e Identidade O livro de Domingos Rodrigues surge num período em que Portugal atravessava uma reconfiguração identitária no pós-Restauração (1640), com renovado orgulho nacional e simultânea abertura ao exterior. Arte de Cozinha é reflexo desta ambivalência: integra influências estrangeiras — particularmente francesas, espanholas e italianas — mas inscreve-as num quadro que é marcadamente português. Entre os ingredientes e técnicas descritas, destacam-se o uso da canela, da noz-moscada, do cravinho e da pimenta, vestígios da herança indo-portuguesa e da rota das especiarias. A presença de pratos como “arroz de caranguejo”, “cabrito assado” ou “ensopado de borrego” confirma a fidelidade à tradição peninsular, enquanto receitas como “fricassé”, “caldos finos” ou “molhos brancos” remetem para a escola francesa. Esta cozinha de corte, com pratos elaborados, preparações em múltiplos tempos e um gosto evidente pela abundância, foi pensada para ser executada em casas com meios, criadagem e acesso a ingredientes variados. Mas a sua fixação em livro permitiu, ao longo dos séculos, a sua adaptação e disseminação por outras camadas sociais, influenciando profundamente a gastronomia portuguesa dos séculos seguintes. Doçaria e Conservas: Um Capítulo à Parte A secção dedicada à doçaria revela uma parte importante da matriz cultural portuguesa: a herança dos conventos. Embora Domingos Rodrigues escreva a partir de uma cozinha palaciana, as receitas de doces partilham nomes, ingredientes e técnicas com a tradição monástica, como os “papos de anjo”, os “doces de ovos”, os “fios de açúcar” e os “manjares”. O uso intensivo da gema de ovo, açúcar branco, canela e amêndoa é constante. A descrição dos pontos de açúcar — ponto de fio, ponto de espadana, ponto de espelho — é feita com o conhecimento empírico de quem domina o processo, mas também com o cuidado de ensinar ao leitor atento. As conservas, por sua vez, mostram uma cozinha virada para a gestão do tempo e dos recursos. São indicadas formas de conservar frutas, carnes e compotas, revelando um saber prático e uma preocupação com o armazenamento e a durabilidade — fundamentais numa época sem refrigeração. Uma Obra de Longo Alcance Arte de Cozinha teve várias edições ao longo dos séculos XVIII e XIX, sinal do seu sucesso e da sua utilidade prática. Cada reedição foi adaptando ligeiramente a ortografia e pontuação, mas o núcleo textual manteve-se intacto, preservando o estilo original e a visão do autor. Ainda hoje é estudada em cursos de gastronomia e história da alimentação, e é frequentemente citada como o embrião da literatura gastronómica portuguesa. O seu valor reside não apenas nas receitas, mas na consolidação de um modelo: o livro de cozinha como artefacto técnico e cultural. Ao escrever Arte de Cozinha, Domingos Rodrigues institucionalizou a figura do cozinheiro como autor e especialista, antecipando o papel que mais tarde chefs como Escoffier ou Bocuse viriam a desempenhar noutras latitudes. Conclusão: A Palavra como Forma de Permanência Culinária Domingos Rodrigues legou a Portugal mais do que um receituário — legou um modelo de escrita culinária com intenção de sistematização e transmissão. Arte de Cozinha é uma obra de consolidação do saber técnico, mas também de afirmação cultural num momento em que a identidade portuguesa se reconstruía. Na sua sobriedade e organização, o livro inscreve-se na tradição europeia da literatura de ofício. Mas é, simultaneamente, profundamente enraizado num território — nos sabores, nos gestos e nas práticas que fazem da cozinha portuguesa um património vivo. Ao fixar esse saber em papel, Domingos Rodrigues garantiu-lhe continuidade, estudo e reinterpretação, atravessando os séculos com uma voz que ainda hoje se faz ouvir.
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