A Linguagem de Arte de Cozinha: Vocabulário Técnico e Saber Culinário no Século XVII

A Palavra como Ferramenta de Ofício

A obra Arte de Cozinha (1680), de Domingos Rodrigues, é mais do que uma compilação de receitas: é também um documento linguístico valioso, que regista a linguagem técnica do cozinheiro da corte portuguesa no século XVII. Este vocabulário, simultaneamente prático e normativo, revela não só o estado da arte culinária da época, mas também a forma como o cozinheiro se via a si próprio: como um artesão erudito, com domínio do gesto e da palavra.

Neste estudo, observamos algumas das características principais do vocabulário técnico usado por Domingos Rodrigues, dividindo-o por categorias, e analisando o seu impacto na consolidação de uma linguagem gastronómica portuguesa.

1. Verbos de Técnica e Ação

A construção das receitas assenta, naturalmente, na sequência de acções. Os verbos usados são, por vezes, específicos e com valor técnico preciso, revelando um conhecimento metódico da manipulação dos alimentos.

Alguns exemplos recorrentes:
  • Refogar – usado com frequência, num sentido próximo do actual: alourar em gordura e cebola ou alho.
  • Estufar – cozinhar lentamente, em lume brando e com pouca humidade.
  • Brasear – cozer lentamente sobre brasas, sem chama viva; técnica ainda comum em carnes.
  • Desfiar, desmanchar, esfarelar – usados para manipular texturas, especialmente carnes ou peixe.
  • Espumar – retirar a espuma de caldos ou doces, garantindo claridade e pureza.
Há também verbos hoje arcaicos ou menos usados:
  • Dourar na graxa – fazer alourar em gordura; o termo “graxa” designava genericamente gordura (banha, manteiga).
  • Capar ovos – separar as gemas das claras.
  • Engrossar com pão – espessar molhos ou caldos com pão ralado ou amassado, técnica anterior ao uso sistemático de farinha ou roux.

2. Substantivos de Ingredientes e Utensílios

Domingos Rodrigues usava uma nomenclatura precisa dos ingredientes, revelando familiaridade com produtos da época e do império português. Os nomes por vezes diferem dos actuais, mas mostram uma coerência terminológica que influenciaria obras posteriores.

Alguns ingredientes em destaque:
  • Saragato, sável, lampreia – peixes valorizados à época, ainda consumidos em regiões específicas.
  • Almendra – forma arcaica de “amêndoa”, frequentemente usada na doçaria.
  • Carapinhada – açúcar puxado até fazer fios, base para enfeites de doçaria.
  • Pérola de açúcar – decoração fina para doces, ainda hoje presente em confeitaria conventual.
Quanto aos utensílios, destacam-se termos como:
  • Tacho e panela – usados com distinções subtis de profundidade e função.
  • Caçoilo – recipiente de barro, usado para assar ou cozer lentamente.
  • Assadeira, espeto, trempe – próprios da cozedura por fogo directo ou em forno de brasas.
  • Forma – usado não só para bolos e doces, mas também para moldes de carnes e pastéis.

3. Léxico da Ordem e da Preparação

O livro segue uma lógica de cozinha de corte, onde a ordem e a mise en place são centrais. Isso reflecte-se na escolha de expressões relacionadas com a organização do trabalho:
  • Arrumar o prato – compor visualmente os elementos de forma equilibrada.
  • Meter ao forno bem brando – sugestão de temperatura subtil, sem instrumentos de medição, mas com atenção ao resultado.
  • Cozer em três águas – técnica de branqueamento, para carnes ou enchidos, removendo impurezas.
  • Temperar com o devido sal – expressão de equilíbrio, sem medida exacta, mas baseada na experiência sensorial.
Há também termos que demonstram o cuidado com o tempo e o ritmo:
  • Deixar repousar, dar tempo à massa, esperar que se tome – expressões que pressupõem espera activa, em que o cozinheiro observa e interpreta sinais.

4. Doçaria e Terminologia Conventual

Um dos pontos fortes da obra de Domingos Rodrigues é a doçaria de influência conventual, onde o vocabulário técnico atinge grande sofisticação. As receitas revelam um domínio minucioso do ponto de açúcar, das texturas, da incorporação de ar e das técnicas de conservação.

Termos técnicos notáveis:
  • Ponto de fio, ponto de espadana, ponto de pérola – diferentes graus de fervura do açúcar, cada um com função própria (enrolar fios, formar pastas, cobrir doces).
  • Passar pela calda – técnica de cristalização leve.
  • Assoprar ovos, fazer papas de leite, enrolar trouxas – expressões técnicas para confeitaria manual e delicada.
  • Cobrir com carapinhado – criar uma capa fina e crocante com açúcar puxado.
Este vocabulário, embora próximo do usado noutros contextos conventuais, torna-se aqui codificado e sistematizado, permitindo que outras cozinheiras e cozinheiros reproduzam as técnicas com maior rigor.

5. Arcaísmos e Evolução Linguística

Naturalmente, parte do vocabulário de Arte de Cozinha já não é de uso corrente, mas permanece inteligível para leitores atentos, e revela a evolução da língua portuguesa em contexto técnico.

Alguns exemplos de arcaísmos:
  • Graxa – por gordura;
  • Mandolada – hoje em desuso, referia-se a uma calda espessa com amêndoa;
  • Sufocar carne – cozer em ambiente fechado e húmido;
  • Almíscar e âmbar – ingredientes aromáticos raros, de origem animal, hoje praticamente abandonados na cozinha.
Esses termos oferecem informação valiosa sobre o gosto, o léxico e a sensibilidade técnica do período, e reforçam o valor linguístico da obra como corpus para estudo histórico e filológico.

Conclusão: Uma Linguagem de Cozinha em Formação

O vocabulário técnico de Arte de Cozinha mostra que, já no século XVII, a culinária portuguesa dispunha de uma linguagem especializada, funcional e coerente, capaz de descrever processos, ingredientes, ritmos e intenções. Domingos Rodrigues não apenas executava — nomeava, organizava, explicava.

Este léxico foi a base sobre a qual se ergueram obras futuras e ainda hoje ressoa na terminologia culinária portuguesa, adaptada à modernidade, mas fiel à sua origem artesanal e intelectual.

A obra de Rodrigues é, pois, um marco não só na prática culinária, mas também na fixação da linguagem que estrutura a nossa maneira de cozinhar, ensinar e pensar os alimentos.

PROCURA NO PORTAL DAS COMUNIDADES

 

29 anos online

ROTEIRO DO REGRESSO A PORTUGAL
BLOCO DE NOTAS, CRONICAS E CONTEÚDOS, PARTICIPA!
CONTEÚDOS
Cronicas do jornalista Daniel Bastos
Escritor Ademir Ribeiro Silva
 
MyFoodStreet, sobre Saberes dos Sabores e mais...
Adão, Eva e a maçã
Arca de Noé, uma tábua de salvação
Arte de Cozinha, Primeiro tratado gastronómico português
Arte de Cozinha, Contexto histórico da edição
Arte de Cozinha, Vocabulário usado
Arte de Cozinha, Receitas da Corte
Arte de Cozinha, Impacto na Gastronomia de hoje
Arte de Cozinha, e a doçaria conventual
Arte de Cozinha, das origens até aos nossos dias
Azeite uma dádiva dos deuses
Bebidas e alimentos, os inseparáveis
Bebidas refrigerantes
Café, uma viagem longínqua
Cerveja... uma história de papas
Código “E”, o pão nosso de cada dia
CULINÁRIA no Antigo Testamento, celebrações biblícas
Descobertas maritímas e a sua importância na nossa gastronomia
Descobertas maritímas intercâmbio de culinária
Doce negócio do vício
Domínio da água
Eça de Queirós e os banquetes
Escoffier, o arquitecto da cozinha moderna
Espargos... uma história secular
Falsificadores e intrujões
Fast Food... e Ketchup
Gastronomia, séculos de descoberta
Grande ilusão do jardim natureza
Ler com Sabor
Literatura vs. Gastronomia
Livros de cozinha na história
Margarina... Manteiga dos pobres
Mesa Romana... entre manjares e o vomitorium
Molho Inglês, no segredo dos deuses
Nutrição, Género e Cultura
Pão, o Azeite e o Vinho
Pepsi, diretamente da farmácia
Revolução à mesa
Verdade dos livros
Silêncio á mesa
Slow Food, o retorno à cozinha lenta
Slow Food Portugal,  a genuinidade nas marcas
Sumol, a bebida que também é saudade
Vinho... uma parte da história
Vinho do Porto, marca nacional
Vinho Verde, regional
 

Gostas de Escrever

OFioDaNavalha, crónicas para usares e abusares... copia, altera, faz tuas as palavras...
A arte de ser feliz!
A capacidade de aprender
A casa às costas
A culpa...
A força das palavras
A força de acreditar...
A ilha deserta...
A pele... que se veste
A sociedade perdeu o pio
A teia...
A vida acontece todos os dias
Ajuste de contas
As palavras ditas
Banal realidade
Cada qual com a sua realidade
Caminhos da felicidade
Coisas que não digo
Cuida dos teus talentos
Decide-te... agarra a tua vida...
Derrotas
Dias vazios
Entre nascer e morrer
Esperas e outras horas vazias...
Quando tudo é pouco...
Hoje é o melhor dia de sempre...
Impossivel fazer alguém fel
Manual de instruções...
Não me roubem o mar...
Outro dia... Outro lugar
O circo de feras
O fio da navalha
O fogo que arde em ti... convicção!
O homem livre
O jogo da vida
O mar sem sal
O princípio é o fim!
O Senhor Contente
O significado da felicidade...
O soldadinho de chumbo
Onde fui... quando desapareci
Os dias diferentes...
Os intocáveis...
Outubro e os sonhos
Outro dia … outro lugar...
Pessoas felizes, vivem mais tempo!
Quem és tu?
Se... houver justificações
Ser ou não ser...
Sobre a vaidade
Sobre marcas nas paredes
Sobre medos no caminho...
Sobre perguntas e respostas
Sobre as perdas de tempo
Super Homem versão 2020
Tempos passados...

A Água É Mole A Pedra É Dura”, crónicas de opinião... deixa-nos a tua também...

ÁguaMoleEmPedraDura... Opinião!
A China dos anos 00 do século XXI
A China dos anos 20 do século XXI
A China dos anos 80 do século XX
A guerra da água...
As Rotas da Seda!
Dinheiro contra o bom comportamento
Imparáveis e Implacáveis... o barato às vezes sai caro
Os campeões das vacinas!
Uns agonizam... outros fazem a festa...
União Europeia... tão amigos que éramos...
DEIXA-ME RIR, crónicas de gozo com os cenários à nossa volta...
Deixa-me rir... o dia-a-dia com graça
A cabeça na mochila
Aventura UBER em Portugal
Americanos... só com Ketchup
A galinha existencialista
Benfica e o VAR
Corrupção... o desporto nacional
Espanhóis, tão perto e tão longe
Portugal real ou surreal
Suíça terra de sonho
CULINARIUM XXI
INDEX CULINARIUM XXI, Divulgação Global
3. O APARELHO DIGESTIVO        
4. A TEORIA DOS PRODUTOS        
13. AS ENTRADAS, ACEPIPES         
24. A COZINHA FRIA         
25. SOBRE SOBREMESAS          

CULINARIUM XXI

CULINARIUM XXI

CULINARIUM XXI

CULINARIUM XXI

 

 

Pub

 

Pub

Pub

Pub