Entre o Claustro e a Corte: Arte de Cozinha e a Doçaria Conventual Introdução: Dois mundos que se cruzam A doçaria portuguesa, reconhecida pela sua riqueza técnica e simbólica, teve dois grandes berços: o claustro monástico e a cozinha palaciana. Ao publicar Arte de Cozinha em 1680, o mestre-cuca Domingos Rodrigues, cozinheiro da casa de D. Pedro II, registou receitas que já circulavam em contextos conventuais, mas também lhes conferiu nova forma e função. Este artigo procura analisar como a tradição doceira dos conventos influenciou a obra impressa e, por sua vez, como Arte de Cozinha ajudou a preservar, difundir e transformar essa herança.
Séculos de silêncio: a tradição conventual antes de ser escrita Muito antes da obra de Domingos Rodrigues, os conventos — sobretudo femininos — já produziam doces elaborados com açúcar, gemas, amêndoas, gila e especiarias. Era uma doçaria:
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motivada por ocasiões litúrgicas e festas religiosas,
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criada com produtos excedentes, nomeadamente gemas, devido ao uso das claras na engomagem de hábitos,
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e muitas vezes associada à sustentabilidade económica dos mosteiros, que vendiam doces ao exterior ou os ofereciam como esmola nobre.
No entanto, estas receitas raramente eram publicadas. Circulavam em manuscritos privados, muitas vezes com fórmulas imprecisas ou mesmo codificadas, e mantinham-se em segredo como património interno da comunidade.
Arte de Cozinha: a primeira fixação escrita de práticas doces eruditas Quando, em 1680, Domingos Rodrigues publica a sua obra, fá-lo com o propósito declarado de organizar e transmitir os saberes do ofício culinário. O livro inclui um vasto repertório de doces, entre os quais:
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“Ovos Reais”, confeccionados com gemas batidas e calda de açúcar,
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“Trouxas de Ovos”, recheadas com doce e moldadas em forma de envelope,
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“Doce de Gila” ou “de Marmelada Branca”,
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“Massapães”, moldados em formas variadas,
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“Fios de ovos”, “Cascas de laranja cristalizadas” e “Rebuçados de açúcar em ponto”.
Estas receitas revelam não só um conhecimento profundo dos pontos de açúcar, mas também uma aproximação clara às técnicas e ingredientes comuns nos conventos portugueses da época.
O léxico técnico: da oralidade à tipografia Um dos maiores contributos da obra de Rodrigues foi a sua capacidade de sistematizar e dar nome a procedimentos que, até então, pertenciam ao domínio da oralidade. Termos como:
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“ponto de espadana”,
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“passar a massa ao lume até tomar corpo”,
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“fazer calda em ponto de pérola”,
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“trabalhar a massa em mármore frio”,
passaram a fazer parte do vocabulário técnico da doçaria portuguesa e viriam a ser repetidos em obras posteriores — tanto seculares como religiosas. Desta forma, Arte de Cozinha legitima e difunde um saber feminino e religioso, agora validado pelo imprimatur de um cozinheiro da corte.
Reciprocidade: influência da corte sobre os conventos Embora se reconheça que a doçaria conventual antecede a publicação de Arte de Cozinha, é igualmente certo que a obra exerceu uma influência posterior nos próprios espaços monásticos. A partir do século XVIII, com a crescente circulação de livros de cozinha, muitas comunidades começaram a incorporar ou adaptar receitas impressas às suas práticas internas. Este fenómeno ocorreu por diversas razões:
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Algumas freiras eram oriundas da aristocracia, familiarizadas com a cozinha cortesã.
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As receitas impressas ganham autoridade, funcionando como norma ou referência técnica.
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Com o aumento da pressão económica sobre os conventos, os doces passaram a ser também um produto de mercado — e a apresentação e qualidade passaram a seguir modelos exteriores.
Assim, é plausível afirmar que Arte de Cozinha também moldou, em parte, a forma como os doces conventuais evoluíram e se apresentaram nos séculos seguintes.
O tempo e o açúcar: preservação pela escrita A importância maior da obra de Domingos Rodrigues, neste domínio, reside talvez no facto de ter sido a primeira a conservar por escrito o património técnico da doçaria portuguesa, permitindo que ele:
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transitasse para fora dos muros conventuais,
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fosse repetido, adaptado e reinterpretado,
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e se tornasse referência para a construção da identidade doceira nacional, como viria a acontecer no século XIX e XX.
Sem esta codificação precoce, muitos doces que hoje consideramos típicos — como os fios de ovos ou as trouxas de ovos — poderiam ter desaparecido, ou chegado até nós muito fragmentados.
Conclusão: entre espelhos e ecos A relação entre Arte de Cozinha e a doçaria conventual é de espelhos cruzados. Se por um lado Rodrigues absorveu a tradição monástica e lhe deu forma técnica e visibilidade pública, por outro essa escrita influenciou a forma como os próprios conventos passaram a cozinhar, transmitir e apresentar os seus doces. O livro não inventa a doçaria conventual, mas ajuda a fixá-la, a preservá-la e a transportá-la para novos contextos sociais e históricos. Na encruzilhada entre tradição e inovação, entre a mão da freira e a mão do cozinheiro da corte, encontramos o verdadeiro nascimento da doçaria portuguesa como património colectivo e duradouro.
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