Salmão: o rei dos rios e mares, entre a abundância perdida e o luxo reencontrado

Um peixe com duas vidas

O salmão é, sem dúvida, um dos peixes mais fascinantes que a natureza nos oferece. O seu ciclo de vida é uma epopeia: nasce num rio de água doce, desce para o mar, cresce nas águas frias e salgadas do Atlântico ou do Pacífico, e, anos mais tarde, empreende a viagem de regresso ao rio natal para desovar, num esforço que exige força, resistência e determinação quase sobre-humanas.

Este ciclo anádromo — de ida e volta entre dois mundos — tornou o salmão uma espécie de metáfora universal da vida humana: a luta contra a corrente, o regresso às origens, a busca pela continuidade da espécie mesmo à custa da própria sobrevivência.

Não admira que o salmão tenha sido fonte de mitos, lendas, poemas e símbolos religiosos ao longo da história. No Edda islandês, o deus Loki transforma-se em salmão para escapar à vingança dos deuses, mas Thor consegue agarrá-lo pela cauda — explicação lendária para a sua forma afilada. Entre os nativos americanos do Noroeste Pacífico, o salmão é visto como uma dádiva sagrada, um alimento que liga os homens aos ciclos da Terra.

De alimento dos pobres a luxo das elites

O paradoxo do salmão é este: o peixe que outrora se via como alimento banal e barato transformou-se em produto de luxo.

Durante séculos, foi tão abundante que chegou a ser incluído em contratos de trabalho de criados domésticos. Estes exigiam cláusulas que os protegessem de comer salmão mais do que duas ou três vezes por semana. Na Bretanha, o limite era três vezes; na Noruega, cinco; e na Abadia de Lavoute-Chaillac, em França, os monges revoltaram-se quando obrigados a comer salmão diariamente.

Charles Dickens, no século XIX, associava o salmão à pobreza. Era um peixe vulgar, farto, barato. Hoje, Dickens ficaria perplexo ao ver o preço do salmão fumado nas mesas de restaurantes de Lisboa, Londres ou Paris. A partir da década de 1950, sobretudo com a sua transformação em iguaria fumada, o salmão deixou de ser peixe do povo para se tornar artigo de requinte.

O salmão na Península Ibérica e em Portugal

Pouca gente sabe, mas Portugal foi outrora o limite sul da distribuição natural do salmão atlântico (Salmo salar). Este peixe descia o Atlântico Norte e subia os rios portugueses, sobretudo o Minho e o Douro, onde era pescado em abundância.

No entanto, a construção de barragens sem passagens para peixes, a poluição industrial e urbana, e a destruição de habitats fluviais levaram ao colapso das populações. Hoje, em Portugal, não existem populações viáveis de salmão. Há registos esporádicos de indivíduos que entram no Minho vindos da Galiza, mas não chegam a manter ciclos completos de reprodução.

É curioso refletir que, apesar de já não termos salmão selvagem nos rios, o peixe tornou-se um dos mais consumidos em Portugal. Basta entrar num supermercado: o salmão fresco, quase sempre de aquacultura norueguesa ou escocesa, é omnipresente no balcão de peixe. E a versão fumada tornou-se um clássico em mesas festivas, de Natal a Páscoa.

Um peixe em perigo

O salmão é extremamente sensível à qualidade ambiental. Precisa de rios frios, límpidos, oxigenados e com fundos de cascalho para a desova. Basta a temperatura subir alguns graus ou a água ficar poluída para que o ciclo reprodutivo seja comprometido.

As maiores ameaças ao salmão são:
  • Poluição das águas dos rios.
  • Sobrepesca, tanto em rios como em alto-mar.
  • Barragens e obstáculos artificiais, que bloqueiam a migração.
  • Mudanças climáticas, que aquecem os oceanos e alteram correntes marinhas.
Na Europa, o Reno foi o exemplo mais dramático: de rio riquíssimo em salmão passou a esgoto industrial. Hoje, projetos internacionais tentam reintroduzir o salmão em rios como o Reno, o Sena e até o Tamisa, onde o último salmão selvagem foi registado há mais de 150 anos.

As espécies de salmão

Embora o salmão atlântico (Salmo salar) seja o mais valorizado e o único nativo da Europa, existem várias espécies no Pacífico, todas do género Oncorhynchus:
  • Chinook (ou King) – o maior, podendo ultrapassar os 40 kg.
  • Sockeye – de carne vermelha intensa, considerado dos mais saborosos.
  • Coho (ou Silver) – delicado, muito usado em sushi.
  • Chum – apreciado sobretudo pelas ovas (ikura no Japão).
  • Pink (ou Humpy) – o mais pequeno e abundante, geralmente usado em conserva.
Cada uma destas espécies tem ciclos próprios e importância cultural distinta entre os povos do Pacífico. Para muitos nativos americanos, o salmão não é apenas alimento: é identidade, mito e espiritualidade.

Do salmão selvagem ao salmão de viveiro

O declínio das populações selvagens levou ao desenvolvimento da aquacultura de salmão, sobretudo na Noruega, Escócia, Irlanda e Chile. Hoje, mais de 70% do salmão consumido no mundo é de aquacultura.

Esta prática democratizou o consumo, permitindo que famílias de classe média em Portugal possam comer salmão regularmente. Mas trouxe também polémicas:
  • Os peixes são criados em jaulas marinhas, muitas vezes superlotadas.
  • São alimentados com rações à base de farinha de peixe e óleos, o que levanta questões de sustentabilidade.
  • O uso de antibióticos e pesticidas para controlar doenças e parasitas é uma preocupação de saúde pública.
  • O sabor e textura diferem do salmão selvagem, mais firme e de cor mais intensa.
Ainda assim, o salmão de aquacultura tornou-se peixe globalizado, símbolo de como a alimentação moderna cruza oceanos e se desconecta dos ciclos naturais.

O salmão na cozinha portuguesa

Apesar de não ser parte da tradição culinária portuguesa (como o bacalhau, a sardinha ou o polvo), o salmão foi-se enraizando nas mesas nacionais.

Hoje encontramos salmão em:
  • Pratos grelhados e assados, muitas vezes com batata e legumes, em receitas simples e familiares.
  • Sushi e sashimi, onde a frescura é essencial. Lisboa e Porto, com forte influência da gastronomia japonesa moderna, popularizaram o consumo de salmão cru.
  • Receitas de fusão, como tartares, ceviches, saladas frias e bowls.
  • Entradas e petiscos, sobretudo sob a forma de salmão fumado, servido em canapés com queijo creme, cebola roxa ou ervas aromáticas.
A cozinha portuguesa também se apropriou do salmão de formas criativas. Há quem experimente salmão à lagareiro, com azeite, alho e batata a murro, ou até variações de arroz de salmão, inspirado no tradicional arroz de tamboril.

O salmão na economia mundial

A importância económica do salmão é gigantesca. Hoje, a Noruega é líder mundial na exportação de salmão de aquacultura, seguida pelo Chile, Escócia, Canadá e Irlanda.

Este peixe tornou-se uma mercadoria globalizada, viajando de fiordes noruegueses ou jaulas chilenas para restaurantes em Lisboa, Madrid, Nova Iorque ou Tóquio.

Mas este comércio global levanta questões:
  • Até que ponto a criação intensiva compromete a biodiversidade local?
  • Que impacto ambiental têm os sistemas de aquacultura?
  • Qual o equilíbrio entre consumo massificado e preservação das populações selvagens?

Salmão, cultura e espiritualidade

O salmão ocupa lugar único na imaginação coletiva.
  • Para os nórdicos, era símbolo de astúcia e resistência.
  • Para os celtas, o "Salmão da Sabedoria" era um animal sagrado que concedia conhecimento a quem o comesse.
  • Para os nativos americanos, representava a abundância cíclica da vida, sendo celebrado em rituais de agradecimento.
  • Para os monges medievais europeus, era alimento frequente em dias de jejum, associado à simplicidade e à disciplina religiosa.
Em todas estas tradições, o salmão é mais do que um peixe: é ponte entre homem e natureza, símbolo da luta contra a corrente e da fidelidade ao lugar de origem.

Reflexão final

O salmão é um espelho da nossa relação com o mundo natural. Passou de peixe abundante, associado à pobreza, a luxo gastronómico globalizado. Vive entre dois mundos, rio e mar, e obriga-nos a refletir sobre a fragilidade dos ecossistemas que sustentam a vida.

Em Portugal, resta-nos o sabor importado do salmão de aquacultura. Mas também resta a memória de que, em tempos, este peixe subiu o Minho e o Douro. Talvez um dia, com projetos de conservação, o possamos voltar a ver nos nossos rios.

Até lá, o salmão continua a ser, no prato e na imaginação, símbolo de resistência, luxo e beleza natural.

Grito de Raiva

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