Batata — O tubérculo que mudou o mundo e alimenta Portugal Poucos alimentos carregam uma história tão complexa, contraditória e transformadora como a batata. Hoje, ninguém imagina uma mesa portuguesa sem batatas cozidas a acompanhar peixe, sem batatas fritas ao lado de um bife, sem puré macio a reconfortar nos dias frios ou sem um assado no forno com batatinhas bem temperadas. Mas o caminho que este tubérculo percorreu, desde os Andes peruanos até aos campos portugueses, foi longo, cheio de resistências, mitos, crises e revoluções alimentares. Este é o relato de como a batata, inicialmente desprezada e até temida, se tornou um dos pilares da alimentação mundial e, em particular, da cozinha portuguesa.
As origens incas e o encontro com os europeus A batata (Solanum tuberosum) nasceu nos Andes, cultivada por povos pré-colombianos há milhares de anos. Há evidências do seu consumo desde 3.000 a.C., muito antes de qualquer europeu a ter visto. Nos altiplanos, onde o milho deixava de prosperar acima dos 3.000 metros, a batata foi solução, alimento base e até objeto de rituais. Quando os espanhóis chegaram à América do Sul, no século XVI, já encontraram a batata domesticada e integrada no quotidiano dos incas. Foi Pedro de Cieza de León, cronista das conquistas de Pizarro, quem primeiro a descreveu em 1553. Daí, a batata viajou em segredo para a Europa, talvez em forma de planta trazida por monges ou conquistadores. O que é certo é que Espanha e Itália foram as primeiras a cultivá-la, mas ainda com desconfiança, porque muitos acreditavam que era venenosa.
A desconfiança e o preconceito europeu Na Europa do século XVII e XVIII, a batata era vista como alimento de pobres e desesperados. Em França, o botânico Raoul Combes escreveu em 1749: “Este é, aos olhos de todos, o vegetal mais repugnante, mas o povo, que constitui a maior parte da humanidade, alimenta-se dele.” Era associada a doenças como a lepra, devido à presença de solanina nas partes verdes da planta. Os mais abastados desprezavam-na, convencidos de que era indigesta, vulgar e perigosa. Na Prússia, Frederico, o Grande, teve até de obrigar os camponeses a plantar batata sob ameaça de castigo. Na Irlanda, foi vista como um presente divino pela sua produtividade, mas a dependência quase exclusiva levou à Grande Fome de 1845, quando a praga da batata devastou colheitas inteiras. O destino da batata oscilava sempre entre dois extremos: salvadora em tempos de fome, desprezada em tempos de abundância.
Parmentier e a dignificação da batata Foi em França que surgiu o grande embaixador da batata: Antoine-Augustin Parmentier. Farmacêutico e militar, ficou impressionado com a importância do tubérculo quando esteve prisioneiro na Alemanha durante a Guerra dos Sete Anos. Em 1770, num período de fome, a Academia de Besançon lançou um concurso para encontrar alimentos que pudessem aliviar a escassez. Parmentier defendeu a batata com tal convicção que acabou por se tornar o símbolo do seu cultivo. Conta-se que, para mudar a opinião pública, Parmentier plantou campos de batata vigiados por soldados. À noite, os guardas desapareciam de propósito, permitindo que os curiosos roubassem as plantas, acreditando estar a levar algo precioso. Hoje, em França, pratos como sopa parmentière ou puré parmentier ainda homenageiam o homem que ajudou a legitimar a batata.
Da resistência à integração em Portugal Em Portugal, a batata não teve um percurso tão documentado como em França ou na Irlanda, mas os registos apontam para a sua introdução no século XVIII, provavelmente vinda da Galiza ou através das rotas comerciais espanholas. Inicialmente, também enfrentou resistência. Era cultivada em hortas monásticas e quintas aristocráticas, mais como curiosidade botânica do que como alimento de mesa. Mas, com o tempo, a sua capacidade de adaptação ao solo português e a sua resistência a diferentes climas fizeram-na ganhar espaço. Durante as crises alimentares, a batata tornou-se um recurso essencial, substituindo cereais quando estes falhavam. A sua versatilidade foi-se impondo, até se tornar omnipresente: da batata a murro do Dão, às batatas assadas no forno com cabrito da Beira Interior, do bacalhau com batatas a murro ao cozido à portuguesa. Hoje, é impossível falar de gastronomia portuguesa sem falar de batata.
Um alimento global e universal A batata conquistou o mundo porque reúne características raras:
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Adapta-se a solos e climas diversos.
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Produz muito mais alimento por hectare do que cereais tradicionais.
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Sacia de forma rápida e económica.
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Tem um sabor neutro, que combina com inúmeros temperos e pratos.
A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) classifica-a como a quarta cultura alimentar mais importante do planeta, depois do milho, trigo e arroz. É considerada essencial para a segurança alimentar global. Em Portugal, segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE, 2024), a produção nacional ronda as 400 mil toneladas por ano, concentrando-se sobretudo no Minho, Beira Litoral e Oeste. Embora importemos algumas variedades, a batata portuguesa continua a ser valorizada, sobretudo a de Denominação de Origem Protegida (DOP), como a Batata de Trás-os-Montes e a Batata da Beira Alta.
Culinária: da rusticidade à sofisticação A batata tem uma característica única: é camaleónica. Pode ser humilde e rústica, servida com pele numa refeição de aldeia, ou sofisticada, transformada em mousseline num restaurante de alta gastronomia. Na cozinha portuguesa, assume múltiplas formas:
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Batata cozida — presença indispensável no peixe cozido ou no bacalhau.
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Batata assada — inseparável de assados de carne.
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Batata frita — desde as tradicionais “palito” às caseiras às rodelas.
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Batata a murro — esmagada com pele, regada com azeite e alho.
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Puré de batata — simples ou enriquecido com leite e manteiga.
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Sopas — como a clássica caldo verde, onde a batata dá cremosidade.
Na alta cozinha, chefs portugueses exploram cada vez mais o potencial da batata em texturas modernas: chips ultrafinas, espumas leves ou batata desidratada a acompanhar pratos de assinatura.
A sombra da praga e os desafios atuais Se no século XIX a praga da batata foi responsável por fome e morte em larga escala, hoje o desafio é outro: a industrialização e a perda de qualidade. Muitas variedades tradicionais foram substituídas por híbridos modernos, mais produtivos mas menos saborosos. Além disso, o uso intensivo de pesticidas e fertilizantes levanta preocupações ambientais e de saúde. Em contrapartida, há um movimento crescente em Portugal de recuperação de variedades autóctones, mais resistentes e com melhor sabor, como as batatas “ratinhas” do Douro ou as variedades de casca roxa do Minho.
Reflexão final: o alimento humilde que nos espelha A batata é mais do que um simples tubérculo. É um espelho da condição humana: desconfiada no início, aceite pela necessidade, celebrada pela abundância. É um alimento que une povos, atravessa crises e sobrevive a preconceitos. Em Portugal, ela está no prato do pobre e no banquete do rico, no cozido de domingo e no prato de autor. Talvez seja por isso que emociona: porque a batata não tem classe social, não tem fronteiras, e está sempre lá, como uma companheira silenciosa da vida quotidiana.
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