Coelho: Entre a tradição e a simplicidade de um sabor esquecido

O coelho na memória das cozinhas humildes

Apesar de a sua carne ser branca, delicada e com sabor próximo ao do frango, o coelho nunca conquistou o estatuto da alta gastronomia. Tal como observava o gastrónomo Horst Scharfenberg, os coelhos — ou, como ele lhes chamava, “lebres de celeiro” — eram sobretudo a carne das famílias humildes. Eram abatidos aos domingos, em dias de festa ou em ocasiões especiais, quando a mesa precisava de abundância.

A receita mais comum era o fricassé ou o ragu, sempre com bastante molho. O truque era simples: o molho permitia render o prato, molhando o pão, a batata ou a massa, e assim alimentava-se uma família inteira. Também na vizinha França, como recorda Robert Courtine, o coelho era considerado comida de pobre: saboroso, mas sem grande sofisticação, quase sempre servido como gibelotte, um ragu camponês.

No entanto, em países como Itália e Espanha, a carne de coelho conquistou maior prestígio. Fácil de criar, fértil e económico, o coelho tornou-se parte essencial da dieta mediterrânica. Os italianos inventaram pratos como o coniglio alla cacciatora, cozido lentamente com vinho, ervas e tomate, e os espanhóis integraram-no na sua mais célebre iguaria: a paella valenciana, que tradicionalmente combina arroz, frango e coelho.

O nome e as raízes antigas

O naturalista Elsholtz escrevia que o termo cuniculus vem dos túneis subterrâneos que o animal escava, como pequenos mineiros. Varro considerava-o uma “terceira raça de lebre” vinda de Espanha, e Jonston sugeria que os primeiros a comer coelho foram, de facto, os ibéricos.

Na Antiguidade, os coelhos só aparecem referidos a partir da época helenística. Os gregos e romanos conheciam-no, mas distinguiam-no bem da lebre. Curiosamente, depressa se tornou uma praga agrícola, obrigando os agricultores a caçá-los mais por necessidade de controlo do que por fins culinários.

A criação de coelhos domesticados era desconhecida no mundo clássico. Só na Idade Média surgiu a ideia de canalizar a sua enorme fertilidade para consumo humano regular. Antes disso, a iguaria mais procurada era macabra: os fetos de coelho quase a termo, elogiados por Plínio como “um alimento delicioso, se servidos com as entranhas intactas”.

Entre rituais e divindades

Nas Américas, o coelho já tinha uma presença marcada antes da chegada dos europeus. Entre os astecas, existia uma divindade do coelho associada à lua, símbolo de fecundidade e de abundância. Os povos pré-colombianos comiam carne de coelho regularmente, e os Shoshones caçavam-nos em elaborados rituais comunitários: homens, mulheres e crianças uniam esforços, formando semicículos com redes, até que os coelhos eram empurrados para a captura e mortos de forma organizada.

O coelho ibérico — a origem

Tudo indica que os coelhos domésticos descendem do coelho bravo europeu, cuja origem se situa na Península Ibérica. Daqui se espalharam para o resto do continente, para a África do Norte e, mais tarde, para o mundo inteiro.

Essa origem explica por que razão o coelho bravo ocupa ainda hoje um lugar de destaque na gastronomia portuguesa e espanhola. Em Portugal, pratos como o coelho bravo à caçador, aromatizado com vinho tinto, ervas e especiarias, ou o arroz de coelho, continuam a evocar uma cozinha de tradição camponesa, feita com ingredientes da terra e marcada pelo sabor intenso da caça.

Enquanto o coelho doméstico tem uma carne suave e delicada, o coelho bravo oferece um sabor muito mais intenso, aproximando-se da lebre. Contudo, é cada vez mais difícil encontrá-lo fresco, devido à escassez provocada por doenças como a mixomatose e a doença hemorrágica viral, que devastaram populações inteiras em Portugal desde meados do século XX.

O coelho na tradição portuguesa

Portugal é um dos países europeus onde mais se consome carne de coelho. Está presente em tabernas, festas populares e nas cozinhas de família.
  • Arroz de coelho: prato emblemático, cozinhado lentamente em caldos ricos, com vinho, tomate e ervas. Tradicionalmente feito em caçarolas de barro, lembra a convivência de grandes mesas familiares.
  • Coelho à caçador: estufado em vinho tinto ou branco, com alho, louro e especiarias, é talvez o prato mais popular.
  • Chanfana de coelho: uma adaptação beirã do prato feito com cabra, cozinhado em vinho tinto forte e servido em caçoilas de barro.
  • Feijoada de coelho bravo: um prato rural, menos comum hoje, mas outrora presença nas zonas de caça.
Para além da cozinha doméstica, o coelho aparece ainda nas festas gastronómicas locais, como as feiras de caça no Alentejo e na Beira Interior.

Um alimento de resistência e simplicidade

O coelho foi, durante séculos, alimento de resistência. Criado facilmente nos quintais, alimentava-se com restos vegetais e multiplicava-se rapidamente, garantindo proteína em épocas de escassez. Era, em muitos lares portugueses, a carne que salvava famílias inteiras da fome.

Talvez por isso, nunca atingiu o estatuto da alta gastronomia: porque estava demasiado associado ao quotidiano humilde. No entanto, hoje, com uma maior valorização da cozinha tradicional, começa a ser redescoberto como carne saudável, magra e versátil.

Reflexão final — O coelho entre a memória e o futuro

O coelho é um daqueles alimentos que revelam a profunda ligação entre a mesa e a história das comunidades. Desde os romanos que o viam como uma curiosidade, até aos camponeses portugueses que o estufavam para “render molho”, esta carne modesta nunca foi símbolo de luxo, mas sim de proximidade, partilha e sobrevivência.

No presente, enfrenta o desafio de sobreviver às doenças que ameaçam o coelho bravo e à perda de popularidade nas grandes cidades. Mas talvez esteja justamente aí a sua força: no regresso às origens, no reconhecimento de que, por vezes, a simplicidade guarda a maior das riquezas.

Porque, no fim, o coelho continua a ser aquilo que sempre foi: um pedaço de terra transformado em alimento sincero, tão próximo da vida camponesa quanto da alma portuguesa.

Grito de Raiva

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