Gengibre — Entre a lenda, a medicina e a mesa O gengibre é uma daquelas raízes que atravessam fronteiras, culturas e séculos, carregando consigo tanto o peso do mito como a leveza do quotidiano. Do seu papel na medicina tradicional asiática ao seu protagonismo em bolachas natalícias, do chá reconfortante ao prato apimentado, esta especiaria é uma verdadeira viajante do tempo e do paladar.
Mitos e superstições em torno do gengibre Na antiguidade, atribuíram-se-lhe poderes quase mágicos. Um certo Dr. Fallet chegou a afirmar que o gengibre conferia ao homem poder infalível sobre tigres, tornando-os tão dóceis que podiam ser montados como cavalos. Noutras tradições, acreditava-se que o gengibre afastava íncubos — demónios noturnos que, segundo o folclore, atormentavam os sonos humanos. Mesmo que estas crenças pareçam curiosidades, revelam algo profundo: a perceção do gengibre não apenas como alimento, mas como escudo protetor contra forças externas, fossem elas animais ou sobrenaturais.
As origens da raiz do fogo O gengibre que conhecemos — Zingiber officinale — é um rizoma (e não uma raiz verdadeira) de uma planta herbácea da família das zingiberáceas. Ao contrário do que algumas fontes antigas sugeriam — desde Espanha às Canárias, passando até pelas Américas —, o gengibre não é originário do Ocidente. As evidências apontam para o Sul e Sudeste Asiático, possivelmente a Índia e a Malásia, como berço natural. Aliás, o próprio nome deriva do sânscrito śṛṅgavēra (“em forma de chifre”), que ecoa em quase todas as línguas modernas: gingembre, em francês; ginger, em inglês; gengibre, em português. Curiosamente, já os romanos consumiam gengibre em abundância, embora ignorassem a sua verdadeira origem. Como lhes chegava através do Mar Vermelho, julgavam que provinha da Arábia do Sul. Plínio, sempre atento, lamentava o seu alto preço, não por escassez, mas por causa dos impostos de luxo que recaíam sobre esta especiaria.
Da Índia à Europa medieval Após a queda do Império Romano, o gengibre continuou a ser transportado em pequenas quantidades, mas foi Marco Polo, no século XIII, quem voltou a dar-lhe protagonismo na Europa. Durante a Idade Média, o gengibre esteve entre as especiarias mais valorizadas, usado tanto em pratos doces como salgados. Em França, porém, a moda perdeu força, já que o refinamento do paladar afastava-se das especiarias intensas. Em contrapartida, a Inglaterra adotou o gengibre com devoção. Diz-se que a rainha Isabel I inventou os bonecos de gengibre, bolachas moldadas em forma de pessoas do seu círculo, uma tradição que ainda hoje atravessa gerações nas festas de Natal. Os ingleses levaram esse fascínio para a América, onde o gengibre ganhou espaço não só na cozinha, mas também como parte da cultura revolucionária: soldados transportavam-no nas mochilas para suportar longas marchas. Salem, no Massachusetts, chegou a ser o maior porto de comércio de especiarias do mundo no século XIX, o que talvez explique por que razão o gelado de gengibre ainda hoje é uma tradição peculiar da Nova Inglaterra.
Doce, picante e amargo: as várias geografias do sabor Hoje, o gengibre cresce em quase todas as regiões tropicais:
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Na Indochina, é especialmente picante e intenso.
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Em África, tende a ser mais amargo e pungente.
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Na Jamaica, é considerado dos mais delicados, de aroma fresco e subtil, muito procurado pela indústria alimentar e de bebidas.
O seu sabor varia não só com a origem, mas também com a forma de consumo: fresco, seco, em pó, cristalizado ou em óleo essencial.
Portugal e o toque de gengibre Embora o gengibre não faça parte da tradição gastronómica portuguesa mais antiga, tem ganho destaque nas últimas décadas, sobretudo com a valorização da cozinha saudável e funcional. Hoje, é presença constante em:
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Infusões caseiras, muitas vezes misturado com limão e mel para aliviar constipações.
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Doces natalícios inspirados nos bonecos ingleses.
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Receitas contemporâneas, como sopas e pratos de fusão, onde o gengibre acrescenta frescura e picante.
Curiosamente, em regiões como o Algarve, o gengibre fresco já aparece em hortas urbanas e quintais de curiosos, mostrando que a planta, adaptada ao calor, também encontra lugar por cá.
Entre a medicina e a cozinha O gengibre é muito mais do que um tempero: é também uma farmácia natural. Estudos modernos confirmam o que as tradições orientais já sabiam:
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É eficaz contra náuseas e enjoos (inclusive de gravidez ou de viagem).
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Tem propriedades anti-inflamatórias e pode aliviar dores musculares.
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Estimula a digestão e reduz a flatulência.
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É um aliado na circulação sanguínea e pode reforçar o sistema imunitário.
Talvez Plínio tivesse razão ao lamentar o preço, mas hoje sabemos que o valor do gengibre vai muito além da sua raridade: está no seu impacto real na saúde e na sua capacidade de atravessar culturas com uma força que poucas plantas conseguem.
Curiosidades finais No mundo dos cavalos, conta-se que comerciantes pouco escrupulosos chegavam a inserir pedaços de gengibre no ânus dos animais, fazendo-os levantar a cauda com vivacidade, sinal interpretado como saúde e vigor. Um truque cruel, mas revelador de como o homem sempre explorou esta raiz para além da cozinha. Já em pleno século XXI, o gengibre continua a oscilar entre o mito e a ciência, a superstição e a nutrição. Seja no chá reconfortante de uma avó portuguesa ou no curry picante de uma aldeia indiana, permanece um símbolo de energia e calor, um pequeno pedaço de raiz que, tal como a poesia, nos aquece por dentro.
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