Açúcar: do luxo dourado ao vício do quotidiano O doce que conquistou o mundo Hoje parece banal polvilhar um café com açúcar ou oferecer um doce a uma criança. Mas houve um tempo em que o açúcar era mais precioso que o ouro, reservado a reis, monges e comerciantes poderosos. O açúcar não nasceu em Portugal nem na Europa. O seu percurso é uma verdadeira odisseia histórica, que atravessa continentes, guerras, comércio e até a escravidão, moldando sociedades inteiras.
As primeiras canas doces: da Índia ao Médio Oriente O açúcar de cana tem origem na Ásia tropical, sobretudo na Índia e em zonas do Sudeste Asiático. Os textos sânscritos de mais de 2500 anos já mencionam o uso da cana para extrair o seu “sal doce”. Os indianos aprenderam a cristalizar o sumo da cana, e foram eles que transmitiram o saber aos persas. Quando Alexandre, o Grande chegou à Índia no século IV a.C., regressou com relatos de uma “cana que dava mel sem ajuda das abelhas”. A partir daí, o açúcar começou lentamente a viajar para Oeste. No Mundo Islâmico medieval, o açúcar ganhou uma importância enorme. Com o florescimento cultural de Bagdade, Damasco e Córdoba, aperfeiçoaram-se técnicas de refinação e difundiram-se usos medicinais e culinários. Para os árabes, o açúcar era remédio e especiaria, tão valioso como a canela ou a pimenta.
O açúcar chega à Europa medieval Na Idade Média europeia, o açúcar era raríssimo. Entrava nos portos mediterrânicos através de Veneza ou Génova, vindo das rotas árabes. Custava tanto que era usado como medicamento, vendido em boticas, e não como ingrediente de cozinha quotidiana. Só os príncipes, papas e senhores muito ricos o provavam em banquetes. Para a maioria, o doce vinha ainda do mel — o açúcar era um símbolo de luxo quase inacessível.
Portugal e o início da doçaria atlântica É aqui que entra Portugal na história do açúcar. Durante as expansões do século XV, os portugueses levaram a cana para as ilhas atlânticas — Madeira, Açores, Cabo Verde — onde o clima subtropical permitiu o cultivo intensivo. A Madeira, em particular, tornou-se conhecida como a “ilha do açúcar”. Ali, por volta de 1450, prosperavam engenhos movidos a água, onde a cana era esmagada e transformada em melaço e cristais. O açúcar madeirense foi exportado para toda a Europa e deu origem a uma das primeiras grandes fortunas do império. Com o tempo, os portugueses levaram a cana ainda mais longe, até ao Brasil, que viria a tornar-se o maior produtor mundial. Aqui começa também a página mais negra da história do açúcar: a escravatura. Milhões de africanos foram forçados a trabalhar nas plantações brasileiras, sustentando o chamado “ouro branco” que adoçava as mesas europeias.
O açúcar e a transformação da alimentação Nos séculos XVI e XVII, o açúcar deixou de ser apenas remédio para se tornar ingrediente central de sobremesas, confeitaria e bebidas.
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Em Portugal, floresceu a doçaria conventual: monges e freiras, com acesso a grandes quantidades de açúcar (muitas vezes doado como esmola), criaram receitas como os ovos moles de Aveiro, o pão de ló, as trouxas de ovos, os pastéis de Santa Clara. O açúcar, aliado ao excesso de gemas (resto do uso de claras para engomar roupas ou clarificar vinhos), gerou uma das mais ricas tradições doces do mundo.
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Na Inglaterra e França, o açúcar passou a adoçar o chá, o café e o chocolate — três bebidas que só se popularizaram graças a ele.
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O açúcar também esteve na base de sobremesas coloniais: compotas, geleias, marmeladas (doce de marmelo português que deu nome à palavra “marmalade” em inglês).
O lado negro do açúcar: escravidão e monopólios Não há como contar a história do açúcar sem falar da dor que deixou. O sistema das plantações de açúcar no Brasil, nas Caraíbas e mais tarde em África foi sustentado por milhões de escravizados. O “ciclo do açúcar” foi uma das engrenagens do tráfico transatlântico de escravos. A riqueza de cidades como Lisboa, Londres, Nantes ou Amesterdão esteve ligada diretamente a esse comércio. Cada grama de açúcar nos pratos da elite europeia representava o trabalho forçado, o sofrimento e as vidas ceifadas de africanos arrancados às suas terras.
O açúcar industrial e a democratização Com o século XIX chegou a revolução industrial e, com ela, novas formas de produção. O açúcar deixou de vir apenas da cana: descobriu-se que a beterraba sacarina podia também fornecer sacarose. Na Europa continental, esta descoberta alterou o jogo — sobretudo quando as guerras bloquearam o acesso ao açúcar colonial. As refinarias multiplicaram-se, o preço caiu, e o açúcar passou a estar presente em quase todas as casas, transformando hábitos alimentares. Já não era luxo: era vício quotidiano.
Açúcar hoje: entre o prazer e o excesso Hoje o açúcar é omnipresente: bolos, refrigerantes, snacks, pão embalado, molhos prontos. O que outrora foi raro e precioso tornou-se barato e excessivo. A Organização Mundial da Saúde recomenda um consumo reduzido: não mais que 25 g por dia para adultos. Em Portugal, esse número é frequentemente ultrapassado, com consequências sérias: obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares. Ao mesmo tempo, redescobre-se o açúcar como produto cultural. Em Portugal, a tradição doceira continua viva — dos pastéis de nata às filhós de Natal — mas cresce também a consciência de que é preciso equilíbrio.
Reflexão final: o doce e o amargo da história O açúcar é um espelho da humanidade: capaz de criar beleza, prazer e cultura, mas também de revelar ganância, exploração e desigualdade. Quando hoje mexe o café com uma colher de açúcar, o leitor saboreia séculos de viagens, guerras, engenho humano e sofrimento. É um ingrediente que conta histórias de impérios, mas também de conventos portugueses e das nossas mesas familiares. Talvez por isso, ao mesmo tempo que o adoramos, precisamos também de aprender a respeitá-lo — não só pela saúde, mas pela memória que ele carrega.
by myfoodstreet.ch

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