
Alimentos “Genéticos”: entre o medo, o mito e o prato do dia …sobre como a evolução também foi acelerada em reatores e laboratórios sem que o consumidor desse por isso — enquanto o rótulo continuava a dizer “natural”.
A imagem que choca: a “galinha nua” e outros monstros do imaginário Ele vê a fotografia e estremece. Uma galinha sem penas — frágil, avermelhada, desprotegida — parece saída de um laboratório de ficção. A ideia, apresentada como solução para climas quentes e para poupanças no depenar, prometia crescimento rápido e custos menores. A realidade, porém, é mais crua: sensibilidade a queimaduras solares e ao frio, mais parasitas, dificuldades reprodutivas e bem-estar comprometido. A tal “inovação” acaba por se tornar um símbolo do limite: até onde deve ir a intervenção no corpo do animal quando o preço é a própria vida do animal? Noutra imagem que assombra a memória coletiva, surge um rato de laboratório com uma “orelha” nas costas. Não era genética; era engenharia de tecidos — cartilagem moldada e implantada sob a pele para mostrar que se podia esculpir um órgão. A fotografia, porém, dispensou contexto e espalhou pânico: se é possível isto, o que mais será possível? E há ainda Herman, o touro transgénico dos anos 90, criado para que a sua descendência viesse a produzir lactoferrina humana no leite — uma proteína naturalmente antibacteriana. O projeto acendeu debates éticos, legais e emocionais que moldam, até hoje, o modo como a Europa olha para plantas e animais geneticamente modificados.
Europa, Portugal e o peso do rótulo: o que ele tem mesmo de saber Na União Europeia, há duas décadas que vigora uma regra basilar: alimentos que consistam em, contenham ou sejam produzidos a partir de OGM têm de ser rotulados. Existe um limiar técnico para presenças acidentais mínimas, mas a filosofia é simples: transparência para decidir. Em Portugal, ASAE e DGAV aplicam e fiscalizam estas regras; a informação tem de estar visível e inequívoca para o consumidor. No campo, Portugal cultiva OGM de forma muito limitada, essencialmente milho resistente a pragas em áreas cada vez mais pequenas. A coexistência é regulada, a monitorização é obrigatória e o consumo informado tornou-se prática corrente no retalho. Para ele, a tradução é direta: se o produto ultrapassa o limiar legal, o rótulo tem de dizer; se o produto é biológico, não pode recorrer a OGM. Simples — pelo menos no papel.
O paradoxo que quase ninguém vê: a mutagénese “clássica” e o silêncio do rótulo Ele aprendeu a desconfiar do “transgénico”, mas raramente ouviu falar de “variedades de mutagénese”. A partir dos anos 60, laboratórios públicos e privados recorreram a radiação (reatores de investigação, cobalto-60, raios X) e a químicos mutagénicos para acelerar a taxa natural de mutação e, por seleção, encontrar plantas mais produtivas, mais resistentes, com cor ou forma desejadas. Não havia edição de um gene específico; havia milhares de mutações ao acaso e depois uma triagem paciente. Resultado? Milhares de novas variedades “convencionais” — sem qualquer menção no rótulo — que entraram discretamente nos pomares e nas searas: arroz, trigo, cevada, amendoim, uvas, citrinos, tomate, batata… e por arrasto na cerveja, no whisky, no pão, na massa. É a ironia europeia: a mutagénese clássica nunca foi classificada como OGM, enquanto um tomate editado com precisão por CRISPR continua, à luz das regras tradicionais, mais vigiado do que muitos parentes “clássicos” criados às cegas. Para ele, isto significa que o “natural” do rótulo quase nunca é “selvagem” — é, isso sim, o produto de décadas de melhoramento tecnológico.
CRISPR e as “novas técnicas”: a viragem que pode mudar a conversa Chegam, entretanto, as Novas Técnicas Genómicas (NGT) — com a edição de genoma a permitir microalterações precisas, muitas vezes sem DNA exógeno. A discussão europeia aponta para distinguir plantas que poderiam resultar de melhoramento clássico daquelas que exigem avaliação mais profunda; fala em transparência, registos acessíveis, restrições no modo biológico e barreiras a patentes bloqueadoras. Portugal acompanha este caminho, consciente de que regras claras e proporcionais ao risco são vitais para agricultores, indústria e consumidores. Para ele, o que conta é a utilidade concreta: menos pesticidas? maior resiliência à seca? menor pegada? A tecnologia é um meio; o resultado ambiental é o fim.
E os animais “genéticos”? O caso que incendiou o debate Nos animais, a Europa mantém-se muito mais restritiva. O exemplo mais famoso é o salmão de crescimento acelerado aprovado noutros mercados sob condições de elevado confinamento. Na União Europeia, não há aprovação para consumo de animais transgénicos. O tema continua politicamente sensível e tecnicamente exigente, travado pelo princípio da precaução e por questões de bem-estar animal.
O consumidor entre o medo e a evidência Ele lê manchetes apocalípticas e ouve vozes que garantem “inocuidade absoluta”. Nem uma coisa, nem outra.
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A abordagem europeia é caso a caso, com avaliação científica, rastreabilidade e rotulagem.
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Desastres de grande escala não aconteceram; incidentes e riscos localizados existiram e foram mitigados por regulação e controlo.
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Existem benefícios comprovados de biotecnologia já plenamente aceite — dos enzimas alimentares à insulina humana produzida por microrganismos — que milhões consomem sem contestar.
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Persistem limites éticos e ambientais que não podem ser ignorados: bem-estar animal, contaminação genética de variedades tradicionais, concentração de patentes e acesso desigual à semente.
Em Portugal, a malha institucional — DGAV, ASAE, APA e universidades — dá corpo a este equilíbrio: licencia, avalia, fiscaliza, monitora e publica. É assim que se protege o prato, o agricultor e o consumidor — mais do que com slogans inflamados.
O “natural” que não era tão natural: como ele chegou aqui Ele cresceu com a ideia de que o “bom” era “como a natureza fez” e “o agricultor colheu”. Na prática, quase nada do que comemos é selvagem. A agricultura sempre foi tecnologia: seleção, enxertia, hibridação, mutagénese — e agora edição de genoma. O que muda hoje é a precisão.
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Mutagénese (radiação/químicos): gera-se uma avalanche de variantes e seleciona-se o que presta.
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Transgénese (anos 90): introduz-se, de forma dirigida, um gene muitas vezes de outra espécie.
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CRISPR/NGT (hoje): fazem-se edições finas (cortes, pequenas inserções, “knock-outs”), em muitos casos indistinguíveis de mutações naturais ou de melhoramento clássico — mas com muito mais controlo.
Paradoxo: o que é mais preciso continua, em regra, mais difícil de aceitar do que o que foi feito às cegas durante 60 anos. Daí a urgência de harmonizar critérios de risco com o grau real de intervenção — e de rotular com inteligência, para informar sem estigmatizar a ciência.
Perguntas que ele deve fazer antes de dizer “sim” ou “não” 1) É planta ou animal? Plantas dispõem de vias regulatórias consolidadas; animais para consumo continuam sem aprovação na UE. 2) É transgénese clássica, mutagénese ou edição de genoma? A mutagénese encheu os campos “convencionais” durante décadas; a edição pode reduzir pesticidas, poupar água e diminuir perdas com intervenções cirúrgicas e rastreáveis. 3) Está rotulado? Acima do limiar legal, tem de estar. Em Portugal, ASAE e DGAV fiscalizam. 4) Há avaliação e monitorização públicas? Há — e os relatórios são públicos. Procurar essa informação fortalece a confiança.
Portugal no espelho: o que já é real
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Cultivo: OGM apenas em milho e cada vez menos área. As regras de coexistência e de monitorização ambiental são exigentes.
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Rotulagem: obrigatória acima do limiar; modo biológico sem OGM, ainda que variedades antigas de mutagénese clássica circulem como “convencionais”.
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Debate NGT: Portugal participa nas negociações europeias; a decisão final moldará a competitividade agrícola, a indústria alimentar e a confiança do consumidor.
Como ele pode comer melhor — e pensar melhor • Ler o rótulo: “contém OGM” tem de aparecer quando a lei obriga; ausência de menção não significa ausência histórica de melhoramento intenso. • Valorizar a transparência: marcas e distribuidores que explicam variedades e práticas merecem preferência. • Focar no impacto real: menos pesticidas? menos água? menor pegada? A tecnologia é um meio; o resultado é o que interessa ao ambiente e à saúde pública. • Exigir ciência pública forte: testes independentes, dados abertos, monitorização continuada — para confiar com razão, não por fé. • Distinguir casos, não rótulos: um milho resistente a praga não é um salmão transgénico; uma edição CRISPR não é mutagénese por radiação.
Epílogo: o bom senso vê para lá do espanto Ele olha de novo para a tal galinha sem penas e reconhece o absurdo: crescimento rápido sem bem-estar é uma vitória de Pirro. Mas quando pousa os olhos no prato do dia — pão, massa, fruta, vinho, cerveja — percebe que a história sempre foi genética, só que quase nunca foi contada. O caminho maduro não é demonizar nem endeusar: é perguntar melhor, avaliar melhor e escolher melhor. Entre o medo cego e a euforia ingénua, ele fica com a inteligência do rótulo e da evidência — e, sobretudo, com a responsabilidade de exigir que Portugal e a Europa façam as perguntas certas antes de servir a resposta.
by myfoodstreet.pt 2025


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