
O REINO DA HIGIENE E DA PUREZA Como a fé na limpeza moldou um novo ideal moral, científico e social no século XIX.
MICRÓBIOS, MEDO E REGENERAÇÃO Na segunda metade do século XIX, as descobertas de Louis Pasteur e Robert Koch mudaram para sempre a forma como o mundo compreendia a doença. A certeza de que micróbios invisíveis podiam provocar enfermidades graves deu à higiene uma dimensão quase sagrada. Nesse cenário, a obra de John Harvey Kellogg inscreveu-se sob o duplo selo da pureza moral e da limpeza física. Influenciado por esse espírito, via veneno e sujidade por toda a parte. O corpo humano era, no seu entender, uma “fábrica de toxinas”, e as células da pele, milhões de pequenos esgotos por onde escorriam produtos de decomposição. O ar fresco, a água limpa, os alimentos não contaminados e até mesmo os pensamentos puros eram partes da mesma cruzada contra a degeneração física e espiritual. Não era apenas uma questão médica, mas também política e cultural. A luta de Kellogg encaixava-se na Era Progressista, período em que reformadores sociais procuravam regenerar a América através da disciplina e da moralidade. E, como em tantas outras correntes higienistas, a mulher surgia como guardiã da pureza.
ELLA E. KELLOGG: A GUARDIÃ DA CASA A esposa de Kellogg, Ella Ervilla Kellogg, assumiu esse papel com determinação. Não apenas dirigia a Escola de Economia Doméstica do Sanatório de Battle Creek, como também escreveu inúmeros textos que defendiam uma gestão racional e científica do lar. Para Ella, a saúde começava em casa. Camas de madeira deveriam ser substituídas por estruturas metálicas; edredões de penas eram perigosos, pois exalavam gases nocivos. Os colchões tinham de ser trocados anualmente, arejados diariamente e batidos ao sol quinzenalmente. E, sobretudo, cada pessoa deveria dormir sozinha, já que um adulto exalava por noite mais de um litro de humidade impura. A limpeza era, assim, um ritual de virtude. Abrir janelas, arejar roupas de cama e limpar o chão tornava-se ato de penitência e moralidade. Este zelo, que hoje soa exagerado, era então partilhado por várias correntes higienistas europeias. Mas havia também um lado emancipador: tanto Ella quanto John acreditavam que a ciência podia libertar as mulheres da ignorância e oferecer-lhes novas ferramentas de autonomia.
UM ESPÍRITO SURPREENDENTEMENTE EMANCIPATÓRIO Em 1902, Kellogg publicou o seu Guia Feminino de Saúde e Doença, onde defendia que homens e mulheres tinham capacidades iguais, e que a maior parte das diferenças resultava apenas da educação desigual. Chegou a ironizar: o facto de os homens comerem mais um quinto de alimento não significava que pensassem mais. Defendia o acesso das mulheres ao ensino superior e, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, apoiou o direito ao voto feminino. Denunciou os espartilhos — que deformavam o corpo e simbolizavam o controlo social —, comparando-os a coletes de forças da moral patriarcal. E, embora pregasse roupas funcionais para ambos os sexos, não rompeu totalmente com a tradição. Adotou um estilo excêntrico: após 1902, vestia-se inteiramente de branco, dos sapatos ao chapéu — símbolo ambulante da pureza higienista.
O PURITANISMO SEXUAL Se nas questões sociais Kellogg mostrava-se progressista, na sexualidade mantinha-se preso a um puritanismo férreo. Considerava o sexo uma ameaça à ordem e à saúde. A masturbação — o “vício solitário” — era, para ele, origem de múltiplos males: fraqueza física, perda de memória, acne, insanidade. A sua obsessão levou-o a propor medidas extremas: atar as mãos das crianças durante a noite e, em casos graves, circuncidar rapazes sem anestesia. Em meninas, recomendava cirurgias corretivas. Essas práticas, chocantes aos olhos atuais, revelam o lado sombrio do seu ideal de pureza. Mesmo no casamento, a regra era a moderação: relações sexuais uma vez por mês e apenas com propósito reprodutivo. Kellogg e Ella dormiam em quartos separados, não tiveram filhos biológicos e criaram 42 crianças adotivas. Entre rumores de impotência e infertilidade, o que resta é uma biografia marcada pela repressão sexual e pela disciplina moral.
A ALIMENTAÇÃO COMO TERRENO DE LUTA Para Kellogg, comer nunca foi ato inocente. Era gesto moral, político e espiritual. O modo como uma sociedade se alimentava refletia a sua estrutura e o seu destino. Enquanto Kellogg promovia o vegetarianismo, muitos médicos exaltavam a carne como alimento das “raças conquistadoras.” O médico nova-iorquino Woods Hutchinson afirmava que o vegetarianismo era dieta de povos fracos, enquanto a carne vermelha simbolizava força e progresso. O darwinismo social reforçava essa crença: quanto mais evoluída a sociedade, mais carne consumia. Kellogg discordava. Para ele, a carne era decadência moral e doença. Defendia uma alimentação simples, rica em fibras e vegetais, como caminho não apenas para a saúde do corpo, mas também para a regeneração da sociedade.
DIGESTÃO TAYLORIZADA: A ORDEM NO ESTÔMAGO Influenciado pelo taylorismo, aplicou à digestão a lógica da eficiência industrial. O corpo era uma máquina que devia funcionar em ritmo cronometrado e previsível. No Sanatório, cada refeição era pesada e medida com rigor farmacêutico. Em 1904, os menus já apresentavam valores calóricos, muito antes de isso se tornar norma. Determinava tempos de trânsito intestinal, recomendava 2.500 calorias diárias e condenava qualquer excesso. Comer era exercício de racionalidade, não de prazer. E a saúde intestinal — o centro da sua doutrina — exigia rituais diários: água antes de dormir e ao acordar, farelo, óleo de parafina, enemas e muita fibra. O intestino era o verdadeiro altar da regeneração.
ENTRE A REPRESSÃO E A LIBERTAÇÃO O legado de Kellogg é uma colagem de contradições. Defendia a emancipação feminina, mas pregava a castidade. Promovia a higiene e a ciência, mas impunha moral rígida. A sua luta era progressista e conservadora ao mesmo tempo: prometia autonomia e saúde, mas também disciplina e repressão. É fácil julgá-lo pelos excessos, mas é preciso lembrar o contexto: o final do século XIX era um mundo sem antibióticos, sem contraceptivos, com partos perigosos e moral instável. Para muitas mulheres, o ideal de pureza representava proteção e esperança, não apenas submissão. Kellogg foi, assim, médico e moralista, reformador e censor. Um homem que via o corpo como campo de batalha entre o vício e a virtude.
REFLEXÃO FINAL: ENTRE O SABÃO E A ALMA Refletir sobre Kellogg é olhar para um espelho do século XIX: um tempo de descobertas científicas e de repressões morais, de progresso e de medo. A sua obra mostra como a luta pelo corpo — seja na alimentação, na higiene ou na sexualidade — é sempre também uma luta pela alma da sociedade. Entre máquinas de massagem, duches elétricos e dietas vegetarianas, nasceu uma nova forma de fé: a crença de que o corpo é o templo da alma — e cuidar dele é, afinal, um ato de salvação. by myfoodstreet 2025

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