
Noé e a Arca: Comer para Sobreviver, Partilhar para Recomeçar “E, completados os sete dias, as águas do dilúvio vieram sobre a terra.” (Génesis 7:10) Há episódios bíblicos que, pela sua dimensão simbólica e humana, continuam a interpelar profundamente o presente. A narrativa de Noé e do Dilúvio é um desses casos. Mais do que um relato de destruição e salvação, é também uma história de resiliência, organização, subsistência e esperança, onde a alimentação assume um papel silencioso, mas absolutamente essencial.
Alimentar a vida no meio do caos Abastecer a Arca com alimentos suficientes para oito pessoas durante um ano e onze dias, além de garantir forragem para animais de todas as espécies, terá sido uma tarefa colossal. A carne fresca estaria naturalmente fora de questão. A conservação de alimentos impunha limites claros e exigia soluções práticas, simples e duradouras. Assim, a dieta de Noé e da sua família assentaria essencialmente em grãos, leguminosas e frutos, alimentos secos, resistentes ao tempo e fáceis de armazenar. Ovos e leite, fornecidos pelos animais a bordo, introduziriam alguma variedade nutricional, permitindo uma alimentação relativamente equilibrada mesmo em condições extremas. Neste contexto, a comida deixava de ser prazer para se tornar ato de sobrevivência, mas nunca deixava de ser também um gesto de cuidado e organização.
Noé no seu tempo histórico Situar Noé no seu contexto histórico leva-nos aproximadamente ao período entre o Neolítico (Nova Idade da Pedra) e o Calcolítico (Idade do Cobre), por volta de 4000 a.C.. As evidências arqueológicas indicam que os povos dessa época eram maioritariamente nómadas, acompanhando os rebanhos e iniciando, de forma gradual, a domesticação de animais. O cultivo do trigo e de outros cereais já estava bem estabelecido. Estes grãos eram transformados em farinha e utilizados na produção de um pão simples, achatado e rústico. Curiosamente, por volta de 6000 a.C., já existiam variedades de trigo com elevado teor de glúten, permitindo a confeção de pães mais altos e fermentados, recorrendo a leveduras naturais.
O pão: alimento central e símbolo universal Apesar da evolução técnica, o pão achatado continuava a ser amplamente consumido, tal como ainda hoje acontece em muitas regiões do Médio Oriente. Era cozido diretamente sobre brasas ou entre pedras aquecidas, garantindo uma distribuição uniforme do calor. Este método ancestral permanece vivo entre tribos beduínas do Sinai e do Mar Vermelho, testemunhando uma continuidade impressionante das práticas humanas. Também em Portugal, onde o pão ocupa um lugar central na cultura alimentar, esta ligação ancestral é facilmente reconhecível. Do broa de milho ao pão de trigo, o gesto de amassar e cozer mantém um significado que ultrapassa o simples ato de comer.
Diversificar para resistir Antes do Dilúvio, durante a sua vida nómada, Noé e a sua família recolhiam frutos silvestres, colhiam o que a terra e o mar ofereciam — caracóis, mariscos, caranguejos — e caçavam pequenos animais, como tartarugas, para diversificar a dieta. Para a permanência na Arca, teriam armazenado ervas aromáticas, grãos, frutas secas e nozes, procurando variar as refeições através de combinações simples, mas eficazes. O leite permitiria a produção de queijo de cabra, recorrendo a métodos rudimentares, como recipientes suspensos e balançados até à formação da coalhada — uma técnica conhecida em várias culturas antigas. Estes gestos revelam uma verdade profunda: mesmo em circunstâncias extremas, o ser humano procura diversidade, equilíbrio e dignidade à mesa.
Depois do Dilúvio: da sobrevivência à celebração Quando as águas recuaram e Noé saiu da Arca, o primeiro gesto foi espiritual: oferecer um holocausto ao Senhor. Segundo os costumes da época, é plausível que este ato fosse seguido de um banquete ritual, utilizando as partes dos animais sacrificados que não eram queimadas no altar. A refeição tornava-se, assim, sinal de gratidão, aliança e recomeço. A partir desse momento, uma tarefa imensa aguardava Noé e os seus filhos: reconquistar o mundo, reintroduzir a agricultura, semear para poder colher. Até que os campos e vinhas voltassem a dar fruto, restavam os alimentos armazenados e a abundância do mar. O mar, outrora ameaça mortal, transformava-se agora numa fonte de sustento e vida.
Da terra devastada à terra fecunda À medida que o tempo passava, a terra revitalizava-se. As colheitas regressavam, os nómadas fixavam-se, e tudo começava novamente a florescer. A alimentação acompanhava esta transformação: dos alimentos de sobrevivência passava-se aos alimentos da abundância. É neste contexto que a aliança entre Deus e Noé ganha pleno significado. Não se trata apenas de uma promessa espiritual, mas também de um compromisso com a vida, com a terra e com os seus frutos: “Coloquei o meu arco nas nuvens, e ele será o sinal da aliança entre mim e a terra.” (Génesis 9:13)
Uma lição que atravessa os séculos A história de Noé recorda que comer é um ato profundamente ligado à esperança. Alimentar-se é acreditar no amanhã, mesmo quando tudo parece submerso. Também hoje, numa realidade portuguesa marcada por desafios sociais, ambientais e espirituais, esta narrativa convida a repensar a relação com a terra, com os alimentos e com a partilha. Porque, tal como então, cada refeição pode ser um pequeno recomeço. myfoodstreet.pt 2025



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